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Bandido bom é bandido morto?

A afirmação bandido bom é bandido morto foi transformada em indagação para podermos refletir sobre o assunto. Deve-se lembrar que essa frase é um lugar-comum em diálogos sobre a segurança pública e os limites punitivos estatais. Quem a utiliza, por óbvio, quer fazer valer o seu conteúdo: não há que se tratar bandido com a mesma cidadania ou a mesma cautela com que se cuida do cidadão honesto. Alguns até mesmo a usam no sentido literal: aprovam a pena de morte e ponto.

Entretanto, ao longo dos anos, pudemos perceber que a referida frase é um grito de desprezo de uns em relação a outros, em atitude puramente maniqueísta, demonstrativa de que os bons são os honestos e não cometem crimes; os maus são os bandidos da sociedade, autores de delitos dos mais diversos tipos. Há um interesse – consciente ou inconsciente – para separar a sociedade em grupos, em turmas, em comunidades estanques ou nichos estratificados. Eis o mal da discriminação, que provoca a segregação.

Para responder à indagação do título destas breves linhas, havemos de começar perguntando: quem é bandido? O significado do termo atinge desde aquele que cometeu um crime, passando por quem é considerado maldoso, até chegar à pessoa exilada de uma comunidade. Atendo-nos a quem cometeu um delito, a palavra é intensa, pejorativa, com objetivo segregacionista. Aliás, seria mesmo um paradoxo o uso dos termos bandido e bom, pois eles se repelem.

De outra parte, como visualizar o resultado do bandido morto? Há que se saber o porquê de sua morte. Se quem o matou agiu em legítima defesa, seja um policial ou um cidadão qualquer, o Direito Penal garante a licitude da conduta, conforme dispõe o art. 23, II, c. c. art. 25, do Código Penal. Se a morte é resultante de qualquer abuso estatal, como a tortura ou algo similar, está-se diante de um crime grave, equiparado a hediondo; logo, a qualidade da vítima não importa. Se a sua morte advém de pena de morte, não se está cuidando do cenário brasileiro, pois não admitimos essa sanção penal, exceto em caso de guerra externa no contexto do crime militar.

Portanto, em verdade, não há bandido bom, nem tampouco é aceitável o bandido morto, salvo por exceção legal. A função da frase aponta para a direção de se conceder ao autor de crime um tratamento inferiorizado, humilhante e causador de sofrimento. Se é bandido, não pode ter uma vida tranquila, mesmo que preso.

A afirmação é completamente equivocada. Ousamos dizer que um bandido morto, na maioria das vezes, quer dizer um crime a mais. Quando um agente estatal mata o criminoso, em lugar de levá-lo a julgamento, comete um delito. Torna-se, então, bandido. E isso, como se frisou, nunca é bom.

O lugar do delinquente é no banco dos réus, para que responda, sim, pelo que fez, dentro dos limites punitivos constitucionais e legais do ordenamento jurídico penal. Eis a fórmula básica e simples do Estado Democrático de Direito.

Não há, para desapontamento dos que pretendem a segregação, duas sociedades: a dos honestos e a dos desonestos. Somos uma só sociedade, compondo o povo brasileiro e vamos cuidar de quem comete um crime dentro de parâmetros humanistas, pois isso nos estipula a Constituição Federal.

A luta de séculos, promovida pela humanidade, em busca da consagração dos direitos humanos, conferindo traços de segurança jurídica mínima a cada indivíduo, contra os antigos e contínuos abusos do Estado, precisa ser mantida a qualquer custo. Não são os direitos humanos os grandes vilões da denominada insegurança pública e muito menos da malfadada impunidade.

Em primeiro lugar, antes de se tecer qualquer crítica aos direitos humanos, torna-se essencial conhecer o âmbito real do art. 144 da CF, cuidando da segurança pública. Nesse dispositivo, demonstra-se com perfeita nitidez o seguinte: “a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio…” (grifamos).

Em segundo, partindo-se da premissa supra, a segurança pública é um direito de todos os indivíduos, inclusive dos infratores da lei, pois estes precisam ser reeducados ou ressocializados para retornar ao convívio social. Essa é a lei.

Em terceiro, a segurança pública, embora um dever estatal, é também responsabilidade de todos nós. Ninguém está isento de colaborar com os órgãos policiais, investigatórios, acusatórios e julgadores para se alcançar a punição justa, decorrente do devido processo legal.

Havemos todos de compreender que a impunidade é gerada pela confusa e por vezes ausente política criminal do Estado brasileiro. Não sabem os Poderes da República como e quando punir; por isso, editam-se novas normas penais, prevendo crimes e mais crimes, sem que se tenha a cautela de verificar se existirão meios para efetivamente proteger a sociedade. Sabe-se não ser a criação de um tipo penal incriminador inédito o grande responsável pela queda da criminalidade. É basicamente unânime que lei existente precisa ser lei vigente, vale dizer, realmente aplicada. A criação de novos crimes, em abstrato, não significa que o Estado cuidará de encontrar e punir os seus autores. Isto, sim, gera impunidade.

Inexistindo uma meta certa e definida a seguir, no plano do direito penal, o legislador se perde, confundindo-se dentro do mar de leis criminais e, para salvar-se, edita mais normas. A segurança pública perde a sua eficiência, quando o próprio governante não tem noção de onde se encontram os reais problemas criminais do seu país.

Assim sendo, preservar os direitos humanos é o mínimo que todos devemos fazer para garantir a continuidade do Estado Democrático de Direito, onde se encontra a base sólida da dignidade da pessoa humana (art. 1o, III, CF), que nos protege dos abusos estatais. Na sequência, é fundamental que as autoridades do Poder Executivo em harmonia com o Legislativo adotem uma política criminal bem clara e plausível a seguir. Estabelecida a nova política criminal, reformam-se Códigos e leis especiais na órbita criminal. A reforma precisa ser realística, construída para a sociedade brasileira, cessando-se o mau vezo de importar normas de outros países, cuja realidade social é completamente diversa do Brasil.

Equilibradas as leis penais e processuais penais, conforme a política criminal adotada, os órgãos de segurança pública precisam ser valorizados e remunerados condignamente. A partir disso, é possível cobrar do Estado a eficiência prometida. Antes disso, estaremos todos reclamando da insegurança, muitos dos quais colocando a culpa nos direitos humanos e tecendo tolos comentários, protetores da abusiva atuação estatal, como bandido bom é bandido morto. Está na hora de colocar um ponto final nisso.

Conheça o catálogo do autor,  incluindo a obra “Direitos Humanos  versus Segurança Pública”.