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Condução coercitiva e o julgamento do Supremo Tribunal Federal: o confronto maniqueísta

 

Há cerca de três anos, venho escrevendo em diversas obras e ministrando palestras em estabelecimentos de ensino da área do Direito, ocasiões nas quais tenho frisado o caráter de ilegalidade da condução coercitiva inventada por setores do Judiciário, a pedido do Ministério Público. Em primeiro lugar, a correta lembrança do significado, da validade e da legitimidade da condução coercitiva. Há dois enfoques possíveis: a) sob o ponto de vista da testemunha, que, recalcitrante, devidamente intimada para comparecer a uma audiência, deixa de fazê-lo, sem dar qualquer justificativa plausível. E a ninguém é dado o direito de não colaborar com o Poder Judiciário. Desse modo, o oficial de justiça, em data especialmente marcada pelo juiz, vai buscar e conduz coercitivamente a testemunha ao fórum para ser ouvida; se preciso, conta-se com o apoio policial (art. 218, CPP); b) sob o ponto de vista do acusado, antes de mais nada, é fundamental expressar que ele tem o direito ao silêncio, constitucionalmente assegurado, não sendo obrigado a falar nada, especialmente algo que o incrimine; porém, há o art. 260 do CPP, preceituando o seguinte: “se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença”. Este artigo está em vigor, mas a sua leitura – como muitos gostam de apregoar, mas não o fazem no caso concreto – deve ser feita a partir da Constituição em direção do Código de Processo Penal – e não o contrário. A ideia de conduzir o réu coercitivamente à frente do juiz datava da época na qual o seu silêncio fazia presumir sua culpa. Note-se que, até hoje, o CPP (1941) não alinhou todas as suas normas às da Constituição Federal (1988). Observe-se o disposto pelo art. 198 do CPP, sem adequação ao texto constitucional: “o silêncio do acusado não importará confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz” (grifamos). Avalie-se, agora, a franca contradição com o preceituado pelo art. 186, parágrafo único, alterado pela Lei 10.792/2003, à luz da Constituição: “o silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa” (grifamos). Somente por este paradoxo, pode-se notar que o texto mais atual do CPP é o que vale: o silêncio do réu não presta para nada em matéria de provas destinadas a formar a convicção do julgador.

Nessas bases constitucionais, o art. 260 do CPP só tem legitimidade para ser aplicado, caso seja para o juiz ter contato pessoal com o réu, a fim de sanar, por exemplo, uma dúvida quanto à sua identificação processual. Deve-se isto à segurança jurídica de um processo-crime. Pode o acusado ser levado a juízo para esse objetivo. É apenas um exemplo, mas o que está errado é conduzi-lo coercitivamente para obrigá-lo a produzir prova contra si mesmo, vale dizer, interrogá-lo à força, algo teratológico. Nos variados casos concretos, em época recente, onde se usou a condução coercitiva contra suspeitos (nem réus eram), o motivo era pressioná-los à delação premiada; sair do local onde se encontravam para que buscas pudessem ser tranquilamente feitas, sem nenhum desvio de prova; favorecer apreensões de provas interessantes à luz da acusação; enfim, imagine-se dezenas de mandados de condução coercitiva cumpridos ao mesmo tempo em operação acompanhada pela imprensa (quase sempre), com agentes da polícia federal fortemente armados, muitos dos quais vestidos como “ninjas”, prontos para o ataque. Um verdadeiro espetáculo. O resultado era uma operação de guerra, televisionada, causando comoção em quem assiste, pavor em que passa por ela (inclusive inocentes familiares dos conduzidos) e esgarçando as amarras do Estado Democrático de Direito. Somente desse modo a Polícia Judiciária sabe exercer as suas relevantes funções?

Em suma, testemunhas só podem ser conduzidas coercitivamente se faltarem à audiência marcada, sem justificativa plausível; suspeitos ou acusados só devem ser conduzidos coercitivamente para motivos deveras especiais, não vinculados ao interrogatório de mérito, ao qual não é obrigado a se submeter.

Por outro lado, a prisão temporária existe e deve ser utilizada com prudência e eficiência. Algumas vozes foram capazes de dizer: se não nos derem a condução coercitiva, pediremos a prisão temporária. Ora, os valores e os fundamentos de ambos os institutos são diversos. Ressalte-se, desde logo, que a prisão temporária está completamente fora do cenário das testemunhas. Um lembrete especialíssimo do art. 1º, da Lei 7.960/89: “caberá prisão temporária: I – quando imprescindível para as investigações do inquérito policial;[grifei] II – quando o indicado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade; III – quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos seguintes crimes: a) homicídio doloso (art. 121, caput, e seu § 2°); b) sequestro ou cárcere privado (art. 148, caput, e seus §§ 1° e 2°); c) roubo (art. 157, caput, e seus §§ 1°, 2° e 3°); d) extorsão (art. 158, caput, e seus §§ 1° e 2°); e) extorsão mediante sequestro (art. 159, caput, e seus §§ 1°, 2° e 3°); f) estupro (art. 213, caput, e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único);  (Vide Decreto-Lei nº 2.848, de 1940); g) atentado violento ao pudor (art. 214, caput, e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único);   (Vide Decreto-Lei nº 2.848, de 1940) h) rapto violento (art. 219, e sua combinação com o art. 223 caput, e parágrafo único);  (Vide Decreto-Lei nº 2.848, de 1940); i) epidemia com resultado de morte (art. 267, § 1°); j) envenenamento de água potável ou substância alimentícia ou medicinal qualificado pela morte (art. 270, caput, combinado com art. 285); l) quadrilha ou bando (art. 288), todos do Código Penal; m) genocídio (arts. 1° e 3° da Lei n° 2.889, de 1° de outubro de 1956), em qualquer de sua formas típicas; n) tráfico de drogas (art. 12 da Lei n° 6.368, de 21 de outubro de 1976); o) crimes contra o sistema financeiro (Lei n° 7.492, de 16 de junho de 1986); p) crimes previstos na Lei de Terrorismo.   (Incluído pela Lei nº 13.260, de 2016). Não há autorização legal para a decretação de prisão temporária para determinados crimes (onde ela foi usada), tais como, v. g., corrupção ou lavagem de dinheiro. Aliás, bastava a investigação incluir a associação criminosa (art. 288, CP), havendo ou não, que já seria a porta aberta para a temporária. Desta modalidade de prisão cautelar, surgida no final dos anos 80, para evitar a denominada prisão para averiguação, nasceu a condução coercitiva para ouvir o suspeito. Se não se desejava, pós Constituição de 1988, nenhum tipo de prisão para simplesmente ouvir quem não é obrigado a falar, a sua conversão – sem lei – para o formato condução coercitiva é ilegal e inconstitucional. Registre-se: ser arremedo de instituto jurídico não deveria fornecer nenhum conforto a quem pensa assim combater a impunidade do colarinho branco; afinal, desde que foi criada, em 1989, a prisão temporária serviu muito mais a deter pessoas pobres, que nem mesmo advogado possuem para impetrar habeas corpus.

O STF dividiu-se quanto ao tema, os jornais publicaram comentários sobre o assunto, alguns pertinentes, outros totalmente inadequados, de quem não possui formação alguma na área penal e processual penal. Os eminentes Ministros do Pretório Excelso, por vezes, pareciam disputar um jogo, valendo somente quem vencesse. O Brasil não deve ser palco de experiências de nenhuma espécie, mormente na área da justiça e da segurança pública. A prisão temporária continua a existir, após o julgamento do STF; a condução coercitiva, também. Basta que os operadores do Direito, sem tergiversar, utilizem cada qual com seus requisitos e para determinados fins expressamente previstos em lei. Se a Lei 7.960/89 não atende certas expectativas de operadores do Direito, há o Legislativo para reformá-la. Se a condução coercitiva possui um vácuo legal, encontra-se no Poder Legislativo a solução. Isto é democracia no Estado de Direito, embora muitos a ele não estejam afeiçoados. Onde fica o meio-termo do bom-senso? A prisão temporária é instrumento potente para nutrir uma investigação, pois cerceia a liberdade de alguém de maneira rápida e sem muitos fundamentos (somente quem militou na área sabe disso); deve ser usada com cautela e quando for, nos termos da Lei, imprescindível para as investigações do inquérito policial. A mera possibilidade de se ameaçar a sociedade com o crescimento da prisão temporária, porque se eliminou uma ilegal condução coercitiva significa romper a barreira da razoabilidade. Homens de bem querem, sim, combater a corrupção e todas as mazelas dela decorrentes, mas homens de bem também sustentam os direitos e garantias individuais sem vergonha disso. O garantismo, sinônimo de quem defende a legalidade, virou termo jocoso, para muitos, apontando para quem quer o triunfo da impunidade dos ricos (sic). Do lado oposto, defender a prisão cautelar para delitos do colarinho branco transformou-se em pseudoanálise comportamental de quem seria, como outros tantos apontam, fascistas do processo penal. Garantismo como fundamento da legalidade em penal e processo penal deveria ser um compromisso de todos os operadores do Direito. Proteger a sociedade, decretando medidas coercitivas à liberdade, quando imprescindível, igualmente. Portanto, é preciso um basta nesse confronto intolerante e, por si mesmo, prepotente. Quem faz cabo de guerra com assuntos tão delicados ao Estado Democrático de Direito não tem bom-senso algum; este, sim, é um radical histriônico.

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