Avançar para o conteúdo

Os mitos da audiência de custódia

shutterstock_264369653-1-1024x645

 

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) foi aprovada pelo Brasil por meio do Decreto 678/92, entrando em vigor. Lá se vai o longo período de 23 anos em plena vigência. O art. 7o, 5, ali se encontra: “toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais (…)”. Deste curto trecho surgiu a polêmica atual a respeito da denominada audiência de custódia, como se fosse algo novo, extremamente relevante e urgente. Noutros termos, como se, em 23 anos, o Judiciário descumprisse cláusula fundamental de direitos humanos e, pior, ninguém percebeu. Nem advogados, nem promotores, nem delegados, nem mesmo a doutrina. Inexistem acórdãos considerando a nulidade da prisão em flagrante lavrada por delegado e fiscalizada por juiz de direito em 24 horas, sem a presença do acusado em audiência de custódia, antes de ter sido levantada a polêmica.

Entretanto, atuando como desembargador na 16a. Câmara de Direito Criminal do TJSP, notei surgir da lavra de alguns defensores públicos, certamente estudiosos da referida convenção, a preliminar de nulidade da prisão em flagrante, com soltura do preso, pois ele não foi apresentado ao magistrado. Não emergiu tal argumento de nenhum grande escritório de advocacia criminal, mas da defensoria pública, no afã de sempre lutar por ideias novas em benefício de seus patrocinados. Até aí cumpre seu papel. Rechacei a preliminar, considerando o flagrante legal, indeferindo o relaxamento, pois o delegado de polícia, no sistema adotado pelo Brasil, é um bacharel em Direito, concursado, que conhece muito bem o Direito Penal e o Processo Penal. Para essa autoridade, segundo o CPP, deve ser o preso imediatamente apresentado. Faz-se um juízo inicial da legalidade – não por um leigo, mas por alguém qualificado. Encontrando razões para detê-lo, a autoridade policial lavra o auto de prisão em flagrante. Pode, segundo defendemos (art. 304, CPP), ao final do referido auto, percebendo a debilidade das provas, relaxá-lo e não recolher o detido ao cárcere. Há, inclusive, quem defenda possa o delegado fazer o mesmo se não vislumbrar, além da tipicidade, os elementos referentes à ilicitude e à culpabilidade.

O delegado de polícia pode, também, arbitrar fiança, para crimes cuja pena máxima não ultrapasse 4 anos. Qual outra autoridade pode fazer isso? Não seria uma função típica de juiz em outros países?

Então, muitos leram o meu voto a respeito e torceram como puderam, somente para ser notícia, dizendo que eu estaria defendendo que o delegado “pode presidir audiência de custódia” ou estava “equiparando o delegado ao juiz” e assim vai. São esses divulgadores de falsas notícias ignorantes ou agiram de má-fé. Disse e insisto que o sistema processual do Brasil, vigente há mais de 70 anos, adotou o critério de apresentar o preso ao delegado, para, na sequência (24 horas), ser avaliado o auto de prisão em flagrante por magistrado togado.

Esse sistema nunca se revelou causa ou fundamento de desrespeito aos direitos humanos, tanto assim que os comentadores da Convenção Americana dos Direitos Humanos jamais o destacaram, vale dizer, não mencionaram a tal audiência de custódia. Por todos, confira-se em Luiz Flávio Gomes: “toda pessoa detida deve ser apresentada, sem demora, à autoridade judiciária competente. A violação dessa garantia torna a prisão arbitrária” (Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, 2a. Ed, p. 57). Essa é a única frase dos comentários que cuida do tema. Apresentar o preso ao juiz, para países onde não há a autoridade policial filtrando a acusação formulada por quem prendeu o suspeito, pode ser, de fato, fundamental. Afinal, será o magistrado o primeiro a tomar contato com aquela prisão e poderá ditar seus rumos: mantê-la, arbitrar fiança, ouvir do suspeito se é culpado ou inocente etc.

No Brasil, o delegado é a autoridade que primeiro toma contato com o preso, mas a sua atividade é devidamente fiscalizada por um juiz em, no máximo, 24 horas. Ilegalidades podem ser sanadas pela simples leitura do auto. Liberdades provisórias podem ser concedidas pelo mesmo caminho. E digo enfaticamente: os juízes responsáveis e cuidadosos concedem fiança ou outras medidas cautelares, afastando o detido da prisão, pela simples leitura do auto. “Conversar com o preso” ajuda em quê? Tenho concedido várias liminares de habeas corpus, soltando presos provisórios, pela simples leitura da peça inicial do writ. Os advogados sabem disso e também os defensores públicos. Noutros termos, a autoridade judiciária que quer soltar, assim o faz, sem necessidade alguma de “ver o preso”. Quem não solta, mantendo quase sempre a prisão cautelar, não vai mudar porque “viu ou conversou alguns minutos com o preso”.

Alguns virão com estatísticas, dizendo que onde foi implantada a audiência de custódia, o volume de solturas elevou-se. Causa-me estranheza tal afirmação pelas seguintes razões: a) os juízes trabalhavam muito mal antes e, porque não viam o preso, mantinham-no preso, ainda que ele merecesse a liberdade provisória?; b) esses magistrados da audiência de custódia, por acaso, são titulares de cargos fixos? Ou são designados pela Presidência de seus tribunais?  A pergunta se deve porque, para um sistema dar certo, em tese, seria possível designar juízes considerados liberais ou bem instruídos a soltar o maior número de presos, quando apresentados na tal audiência de custódia. A experiência de S. Paulo (Capital) conduz para respostas duvidosas quanto a tais estatísticas.

Gostaria de saber se os magistrados das audiências de custódia que se realizam, hoje, no Brasil, são todos titulares de cargos fixos. E eles, somente pelo contato com o réu, mudaram sua posição de manter a prisão para soltá-lo. Se alguém me provar isso, gostaria de ouvir do colega juiz o que o réu lhe contou a ponto de sensibilizá-lo, fazendo-o mudar radicalmente de opinião.

A audiência de custódia, com a devida vênia, é um modismo, trazendo vários mitos para serem explorados. Alguns argumentam que ela é a concretização do próprio instrumento do habeas corpus (toma o corpo). Perfeito. Neste importante instituto, há previsão legal para que o juiz/desembargador convoque o preso à sua frente. Nunca soube disso. Se alguém o fez, entra para a estatística mínima, quase desaparecida.

Em suma: a) durante 23 anos, o texto da Convenção Americana sobre Direitos Humanos é o mesmo; somente agora, alguns descobriram que o Brasil o descumpre seguidamente; b) se é um direito humano fundamental, em todos os lugares onde não há audiência de custódia, os flagrantes devem ser imediatamente relaxados, pouco importando o caso concreto; c) se juízes precisam conversar com o réu para dar-lhe algum benefício, devemos transportar o interrogatório novamente para o início da ação penal; d) o projeto-piloto em S. Paulo (é interessante um experimento com direito humano fundamental indisponível…) vale-se do DIPO (Departamento de Inquéritos Policiais), onde os juízes são designados e removíveis a qualquer tempo; e) o sistema no Brasil não consegue transportar réus para as audiências, mas certamente haverá um imenso número de agentes (policiais?) para levá-los todos os dias à frente do juiz; f) a audiência de custódia, se tão importante, deveria estender-se ao Tribunal, para que também o desembargador/ministro possa conversar com o réu e sensibilizar-se; g) se a avaliação da autoridade policial não vale nada, visto que o preso precisa ir à frente do juiz, o destino dos delegados vai mudar completamente; passarão a sair às ruas para investigar e, prendendo, leva-se direto ao juiz; o auto de prisão em flagrante é inútil; h) os defensores, hoje, da audiência de custódia, como um direito fundamental, demoraram a acordar para isso (apenas 23 anos); mas já que o fizeram e estão despertos, convém levar logo ao STJ e ao STF a questão, por meio do habeas corpus para padronizar para todo o Brasil se sim ou se não a audiência de custódia; h) não há essa previsão no CPP; o STF tem a tendência de equiparar tratados a lei federal; de todo modo, mesmo que se considere a referida Convenção acima de qualquer lei, segundo nos parece, quem deve legislar sobre o procedimento nacional a ser adotado para a audiência de custódia é o Poder Legislativo e não o CNJ, nem qualquer Tribunal Regional ou Estadual. A isto se chama legalidade, que vem sendo vilipendiada por um número excessivo de portarias, resoluções, provimentos e similares, originários dos mais diversos órgãos, sem o menor apego à função do legislador em matéria de direito criminal. Enfim, o mito dessa audiência é que ela é essencial para tirar presos provisórios do seu calvário.

Aliás, a moderna Constituição de 1988 (a Constituição-cidadã) nem percebeu que estava olvidando a audiência de custódia no art. 5o. Outra ironia do destino.

De minha parte, continuarei a ler atentamente as peças escritas de habeas corpus e soltar quem considero merecer, seja pela ilegalidade da prisão, seja porque faz jus à liberdade provisória. E se for esta a vontade do STF, ouvirei sem problema o preso, mas continuarei mantendo a prisão cautelar ou concedendo liberdade provisória, de acordo com a lei – e não com lamúria de pessoa detida, por vezes, autora de crime grave.