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Presunção de culpa, pena antecipada e paradigma da ilegalidade: as antíteses do Estado Democrático de Direito

1. Considerações iniciais

A República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, tendo por um dos principais fundamentos o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF). Decorrência natural dessa premissa é a disposição de que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (art. 5º, caput, CF). Para assegurar essa igualdade perante a lei, surgem os direitos e garantias humanas fundamentais, dentre os quais consta o princípio da presunção de inocência (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, art. 5º, LVII, CF), o princípio da legalidade estrita da prisão cautelar (art. 5º, LXI, LXII, LXIII, LXIV, LXV, LXVI, CF) e o princípio da legalidade, em sentido amplo (“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, art. 5º, II, CF) e em sentido estrito ou penal (“não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”, art. 5º, XXXIX, CF).

Ocorre que, mostra-se em rota de colisão o ideal e o real, no cotidiano das decisões judiciárias, no Brasil, servindo para apresentar focos de dissensão em face da dignidade humana, desconsagrando o Estado Democrático de Direito.

Desse modo, em lugar da presunção de inocência, emerge a presunção de culpa, inspirando várias decisões, tais como o indiciamento sem prévia construção probatória; a banalização da decretação da prisão temporária; a desconsideração judicial pela regularidade do auto de prisão em flagrante ou o menosprezo pelo direito à liberdade provisória; o recebimento leviano de peças acusatórias; a vulgarização da prisão preventiva; a lentidão extremada para a formação da culpa, mormente em se tratando de réus presos; a desconsideração do direito de aguardar em liberdade o trânsito em julgado de decisão condenatória; a inviabilização do direito à execução provisória da pena; a indiferença pelo regime inicial fixado em sentença condenatória; a descaracterização da individualização executória da pena, dentre outros.

A fundamental mantença do instituto da prisão cautelar, como medida indispensável à promoção da escorreita instrução probatória, assegurando-se a aplicação da lei penal e impedindo-se distúrbios inúteis à segurança pública, desvirtua-se para o nefasto campo da aplicação da pena antecipada, que, confrontada com a presunção de inocência, somente pode resultar em malfadada presunção de culpa.

Da imposição de pena antecipada, com desprezo à ideia do estado natural de inocência, emerge a consagração de paradigma equivocado, centrado na ilegalidade, como consequência natural dos atos judiciais desvirtuados do parâmetro constitucional.

É preciso uma reação ao desleixo porventura crescente contra a dignidade da pessoa humana, evitando-se o descrédito em relação ao estado de inocência, à legalidade estrita da prisão cautelar e ao princípio da legalidade. É o que se pretende evidenciar.

2. A presunção de culpa

2.1 In dubio pro societate: recebimento da peça acusatória e pronúncia

Por vezes, há uma tendência de se sustentar a existência de uma presunção de culpa, camuflada, por óbvio, sob outra roupagem, consistente na expressão in dubio pro societate. Noutros termos, havendo dúvida, decide-se em favor da sociedade e, por óbvio, contra os interesses do réu. Esse juízo se daria, basicamente, na ocasião do recebimento da denúncia ou queixa e também estaria presente no momento da pronúncia. Alguns a utilizam, ainda, para a decretação da prisão cautelar (temporária ou preventiva).

Admitimos utilizar a referida expressão, mas única e tão-somente com fins didáticos, pretendendo demonstrar aos alunos da graduação que, em determinadas fases do processo, não se pode fazer valer o princípio da prevalência do interesse do réu (in dubio pro reo), pois inexiste julgamento de mérito. Decisões consideradas provisórias podem focar valores diversos da funcionabilidade da dúvida em função dos benefícios ao acusado. Isso não significa, entretanto, a eliminação dos princípios constitucionais básicos de proteção à dignidade humana, muitos deles consagrados pelo art. 5º, da Constituição Federal.

Por isso, não se deve receber a denúncia ou queixa sem a detalhada verificação dos seus elementos de base: aptidão da peça, presença dos pressupostos processuais e das condições da ação, o que demonstra a firmeza da justa causa para a ação penal (art. 395, CPP). Igualmente, não se deve pronunciar o réu sem a prova convincente da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação (art. 413, caput, CPP).

Não se tratam de meras formalidades, livres de qualquer exame mais acurado, pois, se assim fosse, estar-se-ia dando enlevo à presunção de culpa, o que afrontaria a dignidade humana. Por certo, sustentar o ideal é mais fácil do que torná-lo realidade nos juízos e tribunais. Mas a missão do juiz nunca foi nem será simples; ao contrário, é mais complexa do que as linhas escritas pela doutrina podem significar.

Vê-se, na prática, o reinado, ainda predominante, da presunção de culpa por ocasião do recebimento da peça acusatória, visto ser realizado por decisão não fundamentada, por falta de imposição legal, associada ao costume de se confiar na instituição do Ministério Público, no sentido de que, se o promotor denunciou, é porque há provas suficientes (a queixa enfrenta maior análise do juiz, logo, tende a ser mais bem filtrada). Raros são os juízes que leem o inquérito policial (peça que acompanha a denúncia, como regra) para se certificar do acerto da peça acusatória, ao menos no que tange à justa causa para a ação penal. Se assim não fazem, comumente sob o pretexto do excesso de serviço, torna-se, no mínimo, indispensável que controlem a aptidão formal da peça acusatória para atender aos seus primordiais fins, que é levar ao réu o conteúdo claro e preciso da imputação.

Desse modo, receber uma peça manifestamente inepta, pois a constatação de sua inaptidão é visível, bastando sua atenta leitura, torna-se ato judicial eivado de vício, logo, inadmissível. Não se admite recurso contra o recebimento da denúncia ou queixa, como regra, motivo pelo qual o único caminho é a utilização do habeas corpus para o trancamento da ação penal, inadequadamente proposta.

Frisemos que o automático recebimento de peças acusatórias, muitas vezes, por meio da rubrica feita às cegas em decisões montadas pelo cartório, em série, sem qualquer cautela, conspira contra a legalidade e a presunção de inocência.

Não está longe desse ambiente a decisão de pronúncia, merecedora de firme disposição judicial de evitar que casos fúteis, forrados de provas frágeis, cheguem ao conhecimento do Tribunal Popular. Esse é o sistema adotado pelo Brasil: a filtragem da imputação dirigida ao júri. Muito embora seja o Tribunal do Júri o juiz natural das causas que envolvam crimes dolosos contra a vida, é preciso considerar o mecanismo criado para a solução desses feitos criminais tão relevantes.

O legislador brasileiro procurou dar valia à ideia de que o povo pode ser convocado a participar das atividades jurisdicionais, por simbolizar a democratização do Poder Judiciário, dentre outros incentivos de caráter cívico. Entretanto, jamais se buscou um julgamento sem parâmetros e regras rígidas, tanto que o processo do júri congrega o maior número de artigos do Código de Processo Penal. E nada se fez por acaso.

Cientes estamos de que o júri detém soberania em relação aos seus veredictos (art. 5º, XXXVIII, c, CF), além do que suas decisões são proferidas em votação sigilosa, sem qualquer fundamentação. Destina-se a julgar os crimes dolosos contra a vida, importantes infrações penais, em especial quando se trata de homicídio. Ainda que se tenha assegurado a plenitude de defesa ao acusado (art. 5º, XXXVIII, a, CF), é essencial um rigoroso controle judicial dos feitos enviados à apreciação do povo.

Sem formação jurídica necessária, bastando o uso do bom senso e do dever de consciência, decidem os jurados por íntima convicção absoluta. Precisam ter à frente, para apreciação, processos sólidos, contendo versões convincentes tanto para condenar como para absolver. O juiz togado, então, somente não decidiu o caso porque a competência constitucional o remete ao Tribunal do Júri, mas poderia ter julgado com as provas existentes. Fosse vazio o feito, sem provas mínimas, nem mesmo autorizando o julgamento pelo juiz togado, caso pudesse apreciar o mérito, não se deve remeter o processo à apreciação do júri. Ora, se o magistrado não teria elementos para julgar com segurança, por que os jurados teriam? É flagrante caso de impronúncia. Por vezes, conforme a situação, até mesmo de absolvição sumária.

Porém, o foco que se pretende desenvolver diz respeito à decisão de pronúncia, que não é a consagração da presunção de culpa; ao contrário, deve respeitar o estado de inocência e somente encaminhar a julgamento pelo Tribunal Popular o processo que detiver provas consistentes mínimas para possibilitar eventual condenação. Noutros termos, se o júri tem diante de si um caso a apreciar, querendo, pode condenar, pois provas existem para tanto. Essa é a dúvida razoável que merece ser decidida pelo povo e não pelo juiz togado. Esse é o alcance limitado da expressão in dubio pro societate.

A conduta de certos magistrados de pronunciar réus com a mesma facilidade com que recebem uma denúncia, normalmente, sem fundamentar, nem estudar convenientemente o feito, é afrontosa à dignidade da pessoa humana. Não se lança o réu a um julgamento aventuresco; os riscos de erro judiciário aumentam, atingindo níveis inaceitáveis.

Não se deve criticar a instituição do júri, pois seus eventuais erros, em inúmeros casos, decorrem dos equívocos anteriores de juízes togados acomodados, que nem mesmo tiveram o trabalho de analisar minuciosamente as provas, antes de proferir a decisão de pronúncia.

Do juiz togado espera-se fiel observância da Constituição Federal; em lugar de receber a peça acusatória, como se proferisse mero despacho de expediente, exige-se a avaliação da aptidão da peça e da justa causa para a ação penal; em vez de pronunciar o réu, como se juiz não fosse, mas mero preparador de expediente, demanda-se a promoção do ideal filtro de cada processo, para que somente atinja o plenário do júri o feito possuidor de provas suficientes para eventual condenação.

2.2 Indiciamento sem causa

O estado de inocência é o natural das pessoas humanas; alterá-lo para o de culpado demanda o devido processo legal. Cultiva-se o entendimento de que o indivíduo somente passa a ter autênticas garantias, quando exposto ao processo-crime, o que, em verdade, constitui um erro. Afinal, a fase investigatória retrata um importante momento de constrangimento, eivado de situações vexatórias e coercitivas.

O devido processo legal, como princípio regente, lado a lado com a dignidade da pessoa humana, impõe a irradiação de todos os direitos e garantias individuais para a fase antecedente ao processo, dentro dos limites cabíveis a cada situação. Aliás, constam, de forma expressa, em vários incisos do art. 5º, da CF, normas protetoras da pessoa, diante do Estado-investigação.

Por isso, desde o instante em que há atuação da polícia judiciária, investigando a ocorrência de infração penal, deve-se tutelar a base do sistema processual penal, que é a presunção de inocência. O formal indiciamento implica apontar determinado suspeito como autor do crime, anotando-se em sua folha de antecedentes. Quem promove o ato é a autoridade policial, mas não se calca em mera discricionariedade – não no Estado Democrático de Direito – porém em pura legalidade. Confere-lhe o sistema normativo a possibilidade de, formando sua pessoal convicção, indicar quem é o suspeito adequado a responder como autor ou partícipe do delito. Não se pode transformar o solene ato em algo vulgar ou comezinho, pois representa constrangimento natural ao homem de bem.

Banalizar o indiciamento aponta para a ideia de presunção de culpa: se tal indivíduo é o suspeito da prática do crime, nada mais óbvio que a autoridade policial o aponte formalmente, sem maiores cautelas. Essa medida é errônea. Em lugar disso, considerando-se o estado de inocência, o procedimento adequado ao indiciamento demanda a existência de um lastro probatório mínimo; nada que se comparece ao exigido para o recebimento da denúncia ou queixa e muito menos que o demandado para a condenação. Porém, um acervo suficiente de provas para gerar a construção do indiciado, formal suspeito, apontado pelo Estado-investigação, como autor da infração penal.

Tanto representa um constrangimento ilegal o indiciamento sem causa que se autoriza a impetração de habeas corpus para fazer cessar o abuso de direito.

Outra medida desnecessária, ligada ao indiciamento sem causa, de modo indireto, é a exigência formulada por alguns representantes do Ministério Público, deferida pelo juiz, de se proceder ao indiciamento após o recebimento da peça acusatória. Constitui constrangimento ilegal, pois sua meta é, apenas, a geração de mais um momento vexatório ao acusado, sem necessidade. Afinal, o ingresso de ação penal contra alguém, assim que recebida, passa a figurar no distribuidor do fórum e segue para registro na folha de antecedentes. Ora, o controle estatal sobre os feitos criminais existentes contra determinada pessoa se faz normalmente. Despiciendo, pois, indiciá-lo após o ajuizamento da ação penal.

Além disso, a suspeita formal contra o acusado pode não ter origem no convencimento da autoridade policial, mas, sim, do Ministério Público; constitui outra razão para não se proceder ao indiciamento, bastando apresentar diretamente a denúncia.

Essa medida quer consagrar o menos em detrimento do mais; se já há processo-crime contra o réu, inexiste motivo lógico para torná-lo suspeito formal do cometimento do delito. A pessoa já foi formalizada como acusada, que é situação mais grave que mero indiciado. Logo, a única justificativa para tanto é a produção de outro momento constrangedor ao indivíduo, o que nega a ideia de um devido processo legal. Tudo o que for preciso será feito para apurar crimes; o que for desnecessário, pois inútil, deve ser evitado, em nome da dignidade humana.

2.3 A banalização da prisão cautelar

A presunção de culpa e a antecipação da pena constroem os alicerces da disseminação da prisão cautelar, como se fosse o apanágio do combate à impunidade, tão almejado em épocas de crescente violência urbana e incremento da criminalidade.

2.3.1 Prisão temporária

Tem-se notado a dificuldade do Judiciário, mormente de primeiro grau, em dosar o uso da prisão temporária para o preenchimento efetivo das necessidades da investigação criminal, sob reserva a delitos graves. Por certo, a equivocidade estampada na Lei n. 7.960/89 não contribui para solucionar esse ponto, senão para agravá-lo. Preceitua o art. 1º da referida Lei que “caberá prisão temporária: I – quando imprescindível para as investigações do inquérito policial; II – quando o indiciado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade; III – quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos seguintes crimes: a) homicídio doloso (art. 121, caput, e seu § 2º); b) sequestro ou cárcere privado (art. 148, caput, e seus §§ 1º e 2º); c) roubo (art. 157, caput, e seus §§ 1º, 2º e 3º); d) extorsão (art. 158, caput, e seus §§ 1º e 2º); e) extorsão mediante sequestro (art. 159, caput, e seus §§ 1º, 2º e 3º); f) estupro (art. 213, caput, e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único [agora, combinado com seus §§ 1º e 2º); g) revogado pela Lei n. 12.015/2009; h) revogado pela Lei n. 11.106/2005; i) epidemia com resultado de morte (art. 267, § 1º); j) envenenamento de água potável ou substância alimentícia ou medicinal qualificado pela morte (art. 270, caput, combinado com o art. 285); l) quadrilha ou bando (art. 288), todos do Código Penal; m) genocídio (arts. 1º, 2º e 3º, da Lei n. 2.889, de 1º.10.1956), em qualquer de suas formas típicas; tráfico de drogas (art. 12 da Lei 6.368/76 [atual art. 33 da Lei 11.343/2006]); o) crimes contra o sistema financeiro (Lei 7.492, de 16.06.1986).

Não restou claro, como se esperaria da redação da própria lei, se os incisos do art. 1º devem ser analisados cumulativa ou alternativamente. De qualquer das duas maneiras, há resultado inviável. Se a prisão temporária somente coubesse quando os três incisos fossem preenchidos, essa modalidade de cautelar praticamente perderia a utilidade. Exigir-se-ia a imprescindibilidade para as investigações criminais associada à falta de residência fixa ou identidade certa do suspeito, além do preenchimento de algum dos delitos constantes do inciso III. Se a prisão temporária fosse cabível de maneira alternativa, a vulgarização da sua decretação atingiria as raias da inconstitucionalidade, pois bastaria que uma infração menor qualquer apresentasse contexto investigatório propício para se buscar a temporária, algo inadmissível.

A maior parte da doutrina, buscando salvar a redação legal, posicionou-se pela cumulatividade de dois dos incisos (I ou II), sempre associados ao inciso III, que traz a relação dos delitos. Portanto, para a decretação da temporária, demanda-se a prática de um crime constante do inciso III, além de estar conectado ao inciso I ou ao inciso II.

Em nosso entendimento, além dessa equivocidade manifesta, a Lei 7.960/89, editada logo após a Constituição de 1988, que proibiu a prisão para averiguação, foi constituída às pressas, sem muita reflexão (isso, sem contar o fato de ter nascido de medida provisória emanada do Poder Executivo). Por isso, construiu uma lista de delitos desprovida de fundamentos sólidos para evidenciar lógica e utilidade. Não se trata de listagem correspondente aos crimes hediondos, bastando simples comparação. O roubo, por exemplo, permite a prisão temporária, mas não é considerado hediondo. O envenenamento de água potável era tratado como hediondo e, hoje, não mais é desse modo cultivado, embora permaneça na relação das infrações penais que admitem temporária. O estupro de vulnerável é crime hediondo, mas não comporta prisão temporária, por falta de atualização da lei. O mesmo se diga da falsificação de remédios.

Pensamos seja ideal atualizar a Lei 7.960/89 para adequá-la à realidade. Em primeiro lugar, deve o legislador especificar, claramente, quando e como se pode decretar a temporária. Em segundo, a listagem dos crimes que a admitem precisaria corresponder fielmente à relação dos delitos hediondos, pois não há cabimento em se manter crimes hediondos fora do contexto da temporária.

Adaptando-se à interpretação da doutrina, bastariam os incisos I e III, cumulados, eliminando-se o II. Afinal, quando o suspeito não tiver residência fixa ou identidade certa, por óbvio, será imprescindível à investigação criminal decretar-se a temporária. Noutros termos, o disposto no inciso II já está contido no I.

Além disso, o que se verifica, na prática, é a banalização da prisão temporária. Um simples ofício da autoridade policial, por vezes transmitido por fax, chega às mãos do magistrado, contendo um “de acordo” do membro do Ministério Público, com o pleito de decretação da prisão temporária de Fulano, por conveniência da investigação criminal, visto ser ele suspeito da prática do crime “x”. Nada mais que isso. Há juízes que, “confiando” na autoridade policial, decretam a prisão sem analisar um mínimo de provas contra o tal suspeito. Aliás, sem nem mesmo ingressar no mérito da imprescindibilidade alegada para a continuidade das investigações. Raramente – ou quase nunca – se exige a apresentação do preso em juízo e, com sorte, a prisão será decretada por decisão realmente fundamentada. Afinal, muitas são as vezes em que a decretação se dá em termos lacônicos, valendo-se dos mesmos textos legais, que nada dizem (ex.:“decreto a prisão temporária de Fulano, por cinco dias, por conveniência da investigação criminal”).

A prática evidencia que a prorrogação da temporária se faz, em grande número de situações, de maneira automática, bastando um pedido da autoridade policial. Não se analisa a “extrema e comprovada necessidade”, exigida em lei. Aliás, por vezes, nem se sabe o que o delegado está investigando – se é que está.

Não bastasse, criou-se, em muitos Estados brasileiros, a possibilidade de libertação do preso antes do prazo final da temporária decretada, por ação direta da autoridade policial, sem ordem prévia do juiz. É o que se faz, por exemplo, no Estado de S. Paulo. Imagine-se a decretação da temporária por 15 dias, em caso de homicídio doloso (admite-se a temporária por até 30 dias, prorrogáveis por outros 30, para delitos hediondos, conforme art. 2º, § 4º, da Lei 8.072/90). Após cinco dias, a autoridade policial pode simplesmente colocar o suspeito na rua, sem prévia ordem judicial, porque alega não ter encontrado provas suficientes contra o mesmo. Essa versão decorre da interpretação, a nosso ver equivocada, do disposto no art. 2º, § 7º, da Lei 7.960/89: “decorrido o prazo de 5 (cinco) dias de detenção, o preso deverá ser posto imediatamente em liberdade, salvo se já tiver sido decretada sua prisão preventiva”. A norma em questão determina a soltura do suspeito ao término do período decretado pelo juiz. Não antes. Logo, somente quem mandou prender tem o poder de determinar a libertação antes da hora

Entretanto, pouco importa quem solta, nem em qual momento, pois, no fundo, também não importou a razão pela qual a temporária foi decretada, nem se a decisão foi devidamente fundamentada.

Essa vulgarização da temporária autoriza concluir tratar-se do acolhimento da presunção de culpa, associada à antecipação de pena, pois, cumpridos 60 dias de prisão cautelar (o máximo possível), sem que haja denúncia, soltando-se o preso após esse período, não se vai recuperar ou reparar o tempo perdido no cárcere, sem formação da culpa. Ademais, nessa hipótese, nem mesmo se consegue sustentar a antecipação da pena, visto não ter havido processo-crime. Cuida-se de uma prisão por suspeição ou uma sanção que se esgota em si mesmo, quando deveria ser a decorrência da prática comprovada de um delito.

Observa-se que a reparação dessa situação, avessa ao Estado Democrático de Direito, não depende somente da alteração da lei, mas, sim, da modificação de postura dos operadores do Direito, em particular dos membros do Poder Judiciário.

2.3.2 Prisão preventiva

Distante não fica a banalização da prisão preventiva.

Em primeiro lugar, deve-se destacar inexistir no ordenamento jurídico brasileiro atual a prisão cautelar obrigatória. Em segundo, de acordo com o princípio constitucional do estado de inocência, a prisão provisória é uma exceção e não pode, jamais, tornar-se regra. Em terceiro, a prisão preventiva possui requisitos, que precisam ser preenchidos para a sua decretação.

Associados tais fatores, vislumbra-se ser a prisão preventiva uma decisão particular do juiz, em casos relevantes, cuja repercussão atinge, de fato, a sociedade e, de algum modo, afeta o trâmite processual. Noutros termos, a prisão preventiva deve ser visualizada por exclusão, valendo-se de um juízo de eliminação hipotética: se não for decretada, quais são seus efetivos resultados? Encontrada resposta segura a tal indagação, pode-se caminhar para a sua consideração; do contrário, prevalece o estado natural do acusado, que é a liberdade.

Os seus requisitos são, no mínimo, três, cumulados: prova da materialidade do fato criminoso + indício suficiente de autoria + garantia da ordem pública ou garantia da ordem econômica ou conveniência da instrução criminal ou assegurar a aplicação da lei penal.

O primeiro deles significa evidente existência de crime – e não mera suspeita. Nesse caso, não são válidos meros dados conjecturais ou hipotéticos, mas elementos concretos, aptos, inclusive, a gerar condenação, se fosse o momento apropriado. O segundo indica a suficiência indiciária (prova indireta) apontando a autoria da infração penal. Trata-se do mínimo disponível para o recebimento da denúncia ou queixa ou mesmo para o juízo de admissibilidade da acusação no júri (pronúncia). Não se deve decretar a preventiva como forma de apurar a existência do delito e muito menos para consolidar a suspeita sobre determinada pessoa. Essa modalidade de prisão cautelar é um juízo prévio de admissibilidade da imputação, para fins de restrição da liberdade, vale dizer, medida extremamente relevante, pois, se feita levianamente, pode significar uma indevida antecipação de pena ou um flagrante erro judiciário.

Além disso, não se pode ignorar os demais requisitos, na verdade, o terceiro componente da tríade legitimadora da preventiva, em forma alternativa, podendo subsistir mais de um, mas, no mínimo, um deles.

A garantia da ordem pública é o mais aberto de todos e, por óbvio, o mais utilizado e banalizado. Assegurar a ordem pública é um eufemismo natural, pois não será a prisão cautelar de um ou outro acusado que imporá a paz na conturbada vida em sociedade. Porém, entende-se a expressão como forma contundente, usada pelo legislador, para indiciar a indispensabilidade da prisão cautelar, sob pena de se causar grave e particular desordem em determinada comunidade.

A ordem pública deve ser focada em lugares e regiões determinadas – e não nacionalmente, o que seria ilógico. Por isso, indicam-se dados relevantes a preenchê-la: reincidência ou maus antecedentes do agente + gravidade concreta da infração penal + repercussão social (clamor público) + presença de organização criminosa + modo cruel e destacado de execução do crime. Por certo, a associação de todos esses elementos seria a plenitude da segurança exigida para a decretação da prisão preventiva: prender-se cautelarmente o reincidente, que torna a cometer grave crime, de imensa repercussão social, sendo o agente integrante de quadrilha ou bando e tendo agido de maneira cruel e odiosa. A ausência da prisão provisória levaria a sociedade ao desassossego e ao descrédito na Justiça.            Porém, não se espera que, em todos os casos, todos esses elementos estejam presentes, mas, no mínimo, dois deles. Há de se buscar um binômio para a cautelar.

A ordem econômica é terminologia aberta e de difícil interpretação. Convém buscar na ordem pública alguma referência. Por isso, a garantia da ordem econômica volta-se a delitos inseridos nesse perfil, não se podendo usar, por exemplo, esse fundamento para determinar a prisão preventiva de um acusado por roubo. Ao contrário, crimes financeiros, tributários, econômicos, contra o consumidor, dentre outros similares, chamam a garantia da ordem econômica. Sua visualização também pode dar-se por meio de um binômio, dentre os seguintes focos: reincidência ou maus antecedentes do agente + gravidade concreta da infração penal + repercussão social (clamor público) + presença de organização criminosa + modo premeditado, sofisticado e destacado de execução do crime.

A conveniência da instrução criminal volta-se, basicamente, ao transcurso normal dos atos processuais, sem qualquer perturbação exterior, causada pelo réu ou pessoa por ele indicada. Nesse contexto, o enfoque concentra-se na fase probatória. Perícias, testemunhas, documentos, acareações, reconhecimentos, vítimas, buscas, apreensões devem ser produzidos e colhidos com isenção e imparcialidade. Pressões indevidas nesse campo servem para configurar a inconveniência da liberdade de quem está coagindo a produção da prova, resultando em base para a preventiva.

A conveniência (interesse ou proveito) é da instrução criminal e não de qualquer operador do Direito nela envolvido, ou seja, pouco interessa se é mais conveniente ao delegado ou ao promotor manter o réu encarcerado para obter com maior facilidade a prova desejada. Nem tampouco ao juiz pode ser conveniente deter o acusado, pois o processo torna-se mais célere, evitando-se a prescrição, por exemplo. Nada disso interessa. O objetivo é assegurar uma instrução criminal estável e isenta.

A garantia de aplicação da lei penal é o mais estreito dos requisitos, pois raramente se aponta causa justa para a sua configuração. A única base, praticamente unânime, na doutrina e na jurisprudência, forma-se em torno da fuga do acusado. Essa situação, entretanto, não pode ser presumida ou suposta. Exige provas mínimas de sua verossimilhança. Do contrário, pode-se supor que todos os réus, ao menos os acusados de graves crimes, fugirão à pena, que poderá ser elevada, resultando em regime prisional. Dificilmente, um réu por homicídio ficaria em liberdade, afinal, a pena mínima pode representar 6 ou 12 anos de reclusão. Haveria, então, uma suposição de fuga para ser encarcerado.

O ponto fulcral da hipótese de fuga do agente concentra-se, em grande parte, no descrédito atribuído aos agentes policiais, ligados ao Poder Executivo, para fazer valer a sentença condenatória, buscando e encontrando o foragido, após o trânsito em julgado da decisão. Por isso, muitos juízes, atendendo a pleitos do órgão acusatório ou mesmo da autoridade policial, decretam a preventiva, desde logo, com o fito de evitar a futura eventual fuga. Quer-se garantir a efetividade da justiça por antecipação; busca-se contornar a caótica e carente situação de desaparelhamento estatal para investigar e detectar o paradeiro de qualquer pessoa no território nacional; almeja-se, ainda que inconscientemente, aplicar a pena antecipada, evitando-se o fantasma da impunidade.

Não se trata disso a preventiva, pois não figura como ferramenta para operacionalizar a captura de condenados foragidos. Lembremos que qualquer réu, advinda a decisão condenatória definitiva pode optar por fugir. Poucos poderão se entregar para o cumprimento de penas privativas de liberdade elevadas. Desse modo, as falhas são do sistema penal e processual penal como um todo, por haver muitos recursos ou pela falta de controle inteligente do paradeiro de cidadãos no território nacional. Seja por qual motivo for, a ser corrigido, sem dúvida, não se justifica a decretação da preventiva, sob o argumento de que o acusado pode fugir. Ilustrando, Fulano renovou seu vencido passaporte, então, fugirá para o exterior. Ora, se o passaporte estiver vigente, mas não for recolhido pela autoridade judiciária, não pode o réu fugir do mesmo jeito para o exterior? Sem dúvida que sim, o que não autoriza a preventiva. Por isso, a singela renovação do documento também não representa absolutamente nada. Aliás, quem, realmente, pretende fugir para local ignorado deve sair do País em voo clandestino de pouso indeterminado. Por outro lado, esconder-se no Brasil é, por vezes, mais fácil do que seguir para países com eficiente sistema de busca.

Não se pode construir um fato a partir de uma hipótese, sob pena de reverter o estado de inocência ao de presunção de culpa. A fuga do indiciado/réu autoriza a prisão cautelar, para assegurar a aplicação da lei penal, desde que lastreada em fatos, desprezadas as suposições.

Hipótese = o réu pode fugir, pois responde por crime sujeito a elevadas sanções

Fato = o acusado tem endereço e emprego conhecidos, constituiu advogado (ou possui defensor público) e tem comparecido aos atos procedimentais, quando chamado.

Transformar a hipótese em fato significa dizer que, embora ele tenha endereço e emprego fixos, advogado constituído e venha comparecendo, pode fugir a qualquer momento, pois a pena poderá ser elevada. Em conclusão, para assegurar a aplicação da lei penal, decreta-se a preventiva. Esse raciocínio permeia várias decisões judiciais, em particular, no momento da sentença condenatória de primeiro grau, impondo pena privativa de liberdade, com regime fechado.

Ora, não há fato-fuga, mas mera hipótese-fuga, o que não autoriza a segregação cautelar, sob pena de configurar nítida antecipação de pena e desprezo à presunção de inocência.

Outro contraponto a merecer consideração. O Estado combate, com rigor, o criminoso intitulado justiceiro, que busca realizar justiça pelas próprias mãos, muitos dos quais alegam eliminar bandidos. Esse tipo de delinquente rompe as barreiras dos direitos individuais e tenta suprir a deficiência estatal na punição dos criminosos em geral. Por certo, o erro é manifesto. Porém, se o Estado-juiz optar por decretar a prisão de todos os acusados pela mera probabilidade de fuga estará agindo de maneira similar ao justiceiro; à falta de recursos eficazes para prender os sentenciados definitivos, que tenham fugido, decreta-se a preventiva como forma de suprir a deficiência estatal. Noutros termos, atropela-se a lei, violam-se princípios constitucionais, com o fim de prender o réu antes que fuja, muito embora inexistam dados concretos acerca de sua escapada.

Não há exagero nessa comparação. Quer-se evidenciar que o tal justiceiro não tem legitimidade, nem autoridade, para substituir o Estado na sua tarefa punitiva, assim como juízes não podem substituir o Estado-polícia na sua função de capturar foragidos. Diante disso, vislumbrando, com clareza, a possibilidade real de fuga, decreta-se a preventiva, que, nesse caso, envolve até mesmo a conveniência da instrução criminal. Do contrário, deve-se respeitar o estado de inocência até o trânsito em julgado de decisão condenatória. Se o réu fugirá, após ter ciência da sua condenação, cuida-se de hipótese sempre possível, que não legitima, no entanto, a decretação da prisão cautelar.

2.3.3 Prisão decorrente de recurso

Nesse contexto, surge o momento apropriado para ingressar na prisão cautelar decorrente de interposição de recurso, seja em relação à sentença condenatória ou no tocante à pronúncia. Nesta hipótese, preceitua o art. 413, § 3º, do CPP, o seguinte: “o juiz decidirá, motivadamente, no caso de manutenção, revogação ou substituição da prisão ou medida restritiva de liberdade anteriormente decretada e, tratando-se de acusado solto, sobre a necessidade da decretação da prisão ou imposição de quaisquer das medidas previstas no Título IX do Livro I deste Código”. Em relação àquela, dispõe o art. 387, parágrafo único, do CPP: “o juiz decidirá, fundamentadamente, sobre a manutenção ou, se for o caso, imposição de prisão preventiva ou de outra medida cautelar, sem prejuízo do conhecimento da apelação que vier a ser interposta”.

As prisões retratadas nos arts. 413, § 3º, e 387, parágrafo único, do Código de Processo Penal, não são diversas da prisão preventiva, ao contrário, constituem prisões cautelares de mesmo fundo; a única variação entre a prisão preventiva, mencionada nos artigos 311 e 312 do CPP, e a prisão para aguardar o júri ou o recurso consiste na fase em que é decretada. A prisão preventiva, em sentido estrito, serve para assegurar o recolhimento do indiciado ou réu durante o inquérito ou a instrução criminal (art. 311, CPP). A prisão preventiva, em sentido lato, serve para providenciar a recolha do acusado, enquanto se processa o seu recurso.

Antes da reforma penal de 2008, calcavam-se tais prisões cautelares em pressupostos mais estreitos, consistentes em analisar a primariedade e os antecedentes do réu. Se fosse primário e tivesse bons antecedentes, poderia aguardar em liberdade o processamento de seu recurso; caso fosse reincidente ou tivesse maus antecedentes, deveria ser recolhido ao cárcere. Independentemente do debate doutrinário, que se formou em torno da interpretação das antigas normas processuais penais, a realidade hoje é outra. Tais preceitos não mais existem. Todas as fórmulas de prisão cautelar concentram-se nos mesmos requisitos estampados no art. 312 do CPP.

Entretanto, várias são as decisões de pronúncia, que decretam automaticamente a prisão do réu, sem especificar, com detalhes, os motivos determinantes da necessidade de recolhimento cautelar. O mesmo prisma deve ser exposto em relação às decisões condenatórias. Aliás, no tocante às sentenças condenatórias, quando impõem penas elevadas, a tendência de muitos magistrados é decretar a prisão, sob o pretexto de que, enquanto recorre, o acusado pode fugir. Trata-se de uma possibilidade, mas não de um fato. Nos mesmos parâmetros já cuidados, linhas acima, a decretação da prisão preventiva, para assegurar a aplicação da lei penal, deve ter por base um conjunto fático demonstrativo da viabilidade de fuga; jamais meras suposições.

2.3.4 Prisão em flagrante

Por derradeiro, é válido abrir um espaço para comentar os abusos existentes em relação à prisão em flagrante e seu controle pelo Judiciário.

A prisão em flagrante está autorizada pela Constituição Federal (art. 5º, LXI), constituindo medida de ordem administrativa, autorizada a qualquer pessoa. É uma hipótese de legítima defesa social, onde se delega o poder de polícia do Estado a qualquer um. Mas tal mecanismo se desenvolve com limites. Realizada a prisão, deve-se apresentar o preso à autoridade policial para a formalização do ato, por meio do auto de prisão em flagrante. Não bastasse, ingressa, na sequência, o controle judicial da prisão realizada. Qualquer ilegalidade deverá ser prontamente corrigida pelo magistrado, relaxando-se a prisão (art. 5º, LXV, CF). Considerando-se legal o flagrante realizado, invade-se o terreno da conveniência da prisão cautelar e, para tanto, ingressam os requisitos da prisão preventiva, únicos existentes para nortear a indispensabilidade da medida de cautela. Ninguém ficará preso, quando houver possibilidade de concessão de liberdade provisória (art. 5º, LXVI, CF). Esta liberdade é imediata, tão logo o juiz tome conhecimento do flagrante, a menos que os requisitos do art. 312 do CPP já se encontrem presentes.

O que se vê, na prática, é situação diversa e ilegal. Alguns magistrados, tomando conhecimento da prisão em flagrante, medida de ordem administrativa, limitam-se a analisar (quando o fazem realmente) a legalidade do ato em si, ignorando, por completo, o direito à liberdade provisória imediata, quando o caso.

Aliás, levando-se em conta que todas as decisões do Judiciário serão motivadas (art. 93, IX, CF), parece-nos inadmissível a mantença do auto de prisão em flagrante por meros “despachos” padronizados, com o seguinte teor: “Flagrante formalmente em ordem. Aguardem-se os principais”. Em poucas palavras, o juiz fundamentou a prisão realizada e trouxe a si a responsabilidade por ela, tanto que, havendo impetração de habeas corpus, será considerada autoridade coatora o magistrado.

Essa fundamentação é falha e frágil. Não bastasse, inexiste, em muitos casos, qualquer apreciação acerca da liberdade provisória, como se dependesse de pedido expresso do indiciado, vale dizer, se ele nada pleitear é porque deseja estar preso. De outra maneira, somente para argumentar, ainda que quisesse ficar preso, cuida-se de direito indisponível, razão pela qual o juiz deve apreciar de ofício.

Em suma, o controle judicial dos autos de prisão em flagrante, em muitas situações, é manifestamente carente, beirando a ilegalidade e o abuso de autoridade. A vulgarização da prisão em flagrante, como se prisão cautelar fosse, permite a dedução de se estar desprestigiando o estado de inocência.

O flagrante pode ser realizado por qualquer pessoa, logo, por leigos. Cabe ao delegado dar-lhe forma e ao juiz controlar a sua legalidade e os seus efeitos. O principal desses efeitos é a privação antecipada da liberdade, que somente tem cabimento se houver necessidade da prisão preventiva. Não existindo, aguarda-se do magistrado a imediata concessão de liberdade provisória. Se optar por manter a prisão, deve apresentar os fundamentos indispensáveis. Dizer que o flagrante está formalmente em ordem – e nada mais – equivale a se omitir de dever de ofício, chamando a si a responsabilidade pela prisão indevida do indiciado, ainda que por poucos dias.

Se o magistrado, que recebeu o auto de prisão em flagrante, se abstiver de apreciar a liberdade provisória, quando ela for posteriormente concedida por outro juiz ou tribunal, deve-se considerar que o período em que ficou detido sem causa pode configurar constrangimento ilegal abusivo. Se a polícia não pode prender ninguém sem justo flagrante, sob pena de abuso de autoridade, também o juiz não pode manter a prisão, sem a devida motivação, calcada em lei. Abuso por abuso todos devem ser punidos no Estado Democrático de Direito.

Não se pode olvidar o disposto pelo art. 5º, LXXV, da Constituição Federal: “o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença”. Paralelamente, embora não se trate de decisão de mérito, a manutenção de pessoa presa além do que é devido também significa uma forma de abuso similar à prevista no referido preceito constitucional.

Finalizando, vale destacar o disposto pela Resolução n. 66/2009 do Conselho Nacional de Justiça, no art. 1°: “Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá, imediatamente, ouvido o Ministério Público nas hipóteses legais, fundamentar sobre: I – a concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança, quando a lei admitir; II – a manutenção da prisão, quando presentes os pressupostos da prisão preventiva, sempre por decisão fundamentada e observada a legislação pertinente; ou III – o relaxamento da prisão ilegal” (grifamos).

Sobre o teor da referida Resolução, soa-nos extremamente preocupante, ao mesmo tempo em que corretíssima. Preocupa-nos tenha que ser editada Resolução pelo órgão encarregado, constitucionalmente, do controle externo do Poder Judiciário, porque significa que a lei não vem sendo cumprida a contento. Estabelecendo-se uma Resolução administrativa, por órgão com poder censor, imagina-se poder compelir vários magistrados a fundamentar suas decisões, em particular a prisão preventiva, bem como a analisar o direito à liberdade provisória. Por outro lado, a Resolução é correta, na exata medida em que repete os termos legais e constitucionais.

Está-se diante de um infeliz paradoxo, ao estabelecer por resolução de nível administrativo um dever legal que qualquer juiz de direito deveria conhecer e aplicar.

São as mazelas da ainda vigente presunção de culpa, adotada, implicitamente, por vários órgãos jurisdicionais, em detrimento do real princípio constitucional do estado de inocência.

2.3.5 Os abusos decorrentes da Lei 11.340/2006

A edição da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), a pretexto de conferir um tratamento rigoroso ao agressor de mulheres, em particular no cenário doméstico e familiar, terminou por se exceder no que tange à prisão cautelar.

Determinou-se a alteração do art. 313, do CPP, inserindo-se o inciso IV: “se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgências”. Porém, a leitura do novo dispositivo deve ser feita à luz do caput: “Em qualquer das circunstâncias, previstas no artigo anterior, será admitida a decretação da prisão preventiva nos crimes dolosos”. Parece simples concluir que, em qualquer situação de violência doméstica e familiar, admite-se a decretação de prisão preventiva, desde que presentes os requisitos do art. 312 do CPP.

Não é o que está ocorrendo na prática judiciária. Tem-se decretado a prisão cautelar de agentes de crimes menores, tais como ameaça, cuja pena é de detenção, de um a seis meses, ou multa. Vislumbram-se abusos de toda ordem, cotidianos e frequentes, cometidos pelo Poder que deveria ser o guardião dos direitos individuais, que é o Judiciário.

Se houve necessidade para a feitura da Lei Maria da Penha, o que não questionamos, deveria ter o legislador agido com um mínimo de bom senso, buscando elevar as penas, se fosse o caso, para os típicos crimes de violência doméstica ou familiar, como lesão corporal e ameaça. Mas não. Editada a Lei 11.340/2006, a figura qualificada da lesão corporal, prevista no art. 129, § 9º, sofreu uma diminuição da pena. O mínimo, anteriormente, era de seis meses, baixando agora para três. Que tipo de política criminal é essa? Ao mesmo tempo em que se permite a previsão preventiva do agressor da mulher, opera-se a diminuição da pena do delito mais comum (lesão corporal). Inexplicável e inaceitável.

Não tendo havido alteração substancial nas medidas das penas, torna-se nítida antecipação de pena para várias situações a decretação da prisão preventiva. Ilustrando, a decretação da prisão cautelar para o acusado de ameaça pode gerar, com facilidade, o cumprimento antecipado da pena, que gira entre um a seis meses. Se aos crimes cometidos no cenário da violência doméstica e familiar não se pode aplicar os benefícios da Lei 9.099/95, há de existir processo comum. Assim sendo, raramente, tem-se a sua finalização em menor tempo do o previsto para a pena. Ora, termina-se por consagrar o excesso de prisão, que chega a ultrapassar a pena aplicável.

A prisão preventiva, para os casos de violência doméstica e familiar, somente poderia ocorrer por alguns dias, voltada, unicamente, à garantia da execução das medidas protetivas, constantes dos arts. 22 e 23 da Lei 11.340/2006. Exemplificando, decreta-se a preventiva para que se possa efetivar a separação de corpos e o afastamento do agressor do lar, vez que estaria renitente, mostrando desprezo pela ordem judicial.

Entretanto, não é o que se tem acompanhado, sendo necessária, em vários casos, a concessão de habeas corpus para colocar em liberdade o réu que já se encontra detido há muito tempo, em período superior até do que o máximo previsto para o crime do qual está sendo acusado.

Cuida-se de flagrante e indevida antecipação de pena, consagrando-se a presunção de culpa.

2.4 A lentidão do processo e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade

Após a edição da Emenda 45/2004, inseriu-se o inciso LXXVIII no art. 5º, da Constituição Federal, nos seguintes termos: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Instituiu-se, expressamente, o princípio da economia processual.

Passados mais de seis anos, nenhum mudança radical operou-se na Justiça brasileira, a ponto de se efetivar o disposto no preceito supra mencionado. Persiste a lentidão do trâmite processual, em particular no processo criminal. Neste, quando não há prescrição, tem-se a perda de provas e o desgaste da imagem do Judiciário. O pior, entretanto, é a extensão demasiada da prisão cautelar, chegando a configurar antecipação de pena, pois abusiva.

Para a decretação da prisão preventiva, é imprescindível a análise dos requisitos do art. 312 do CPP, mas também o controle da sua extensão, em face da legalidade. Não é legítimo decretar a prisão cautelar para delitos de menor importância, cuja sanção penal move-se em torno de pequenos montantes de privação de liberdade. Além disso, uma vez ordenada, é fundamental que o juiz a controle, evitando-se a antecipação da pena, mormente quando cumprida sem qualquer benefício.

Por mais grave que possa ser a infração penal praticada, há de se ponderar o estado de inocência e o momento oportuno para o cumprimento da pena, que é depois do trânsito em julgado de sentença condenatória. Imagine-se a decretação da prisão cautelar pelo crime de roubo, cuja pena varia de quatro a dez anos de reclusão. Leve-se em consideração, também, os benefícios previstos em execução penal, como a progressão possível, atingido um sexto do cumprimento no regime anterior. Portanto, um réu não pode ficar detido por mais de um ano, como regra, no regime fechado, uma vez que várias hipóteses podem ocorrer: a) condenação a pena mínima, de quatro anos, cujo montante de um ano representa um quarto do total; b) condenação a pena média de seis anos, cujo montante de um ano simboliza um sexto do total; c) absolvição. Nas duas primeiras hipóteses, nota-se um exagero punitivo, pois, mesmo quando condenado, não ficaria o réu preso no regime fechado mais que oito meses, na primeira situação, nem mais que um ano, na segunda. Quanto à terceira, tem-se a total impossibilidade de recuperação do ano perdido.

Se esse mesmo réu ficar preso por tempo muito superior a um ano, invade-se seara mais grave, pois ele começa a atingir patamares de cumprimento de pena, em regime fechado, sem a percepção de qualquer tipo de benefício (progressão aos regimes mais favoráveis, como semiaberto e aberto ou livramento condicional). Note-se, ademais, que nem a execução provisória pode ser implantada antes do advento da sentença condenatória de primeiro grau.

No Brasil, lamentavelmente, ainda se pode encontrar casos teratológicos, demonstrativos do descaso judiciário no rígido controle da prisão cautelar. Há situações em que o acusado se encontra preso por tempo superior à metade do máximo de sua pena, o que se afigura inaceitável: está cumprindo por antecipação muito mais do que deveria, ainda que fosse condenado à pena máxima. Além disso, há os casos de flagrante abuso, quando o réu chega a atingir, em prisão cautelar, o patamar máximo da pena abstrata cominada ao crime do qual está sendo acusado.

A indagação que se faz é simples: quem responde por esse abuso? Segue-se outra questão: quando isso irá terminar? Sem providências concretas, muitas das quais se dão no cenário da mudança de mentalidade dos juízes, não se conseguirá atingir as justas bases do Estado Democrático de Direito.

Por vezes, capta-se o sentido teórico do processo penal democrático desprovido de funcionalidade ou concretude, o que acarreta a ineficácia silente do sistema penal em geral. Noutros termos, a duração razoável do processo e a celeridade de sua tramitação são determinações constitucionais, que envolvem muito mais que uma Justiça rápida, pois abrange a própria dignidade humana, afastando do cárcere as pessoas que já poderiam estar em liberdade, caso fosse cumprida a ordem constitucional.

A duração razoável da prisão cautelar não é um favor estatal, mas um dever inafastável. Tem-se visto que de nada adianta pregar a ineficiência da máquina judiciária, apontando-se culpados, quando há presos detidos por período muito superior ao que se exalta como razoável. Igualmente, nada resolve alterar o texto legal para impor prazos de duração do processo; a experiência nos mostra que eles jamais são cumpridos. Aliás, o legislador, muitas vezes, está completamente fora do real contexto da Justiça Criminal brasileira; parece elaborar leis para cantões suíços.

Os tribunais têm firmado o entendimento, quase unânime, de que a duração da prisão cautelar deve obedecer ao princípio da razoabilidade, sabido que se trata de norteamento aberto e de elástica interpretação. Permitimo-nos acrescentar ser imperiosa a associação da razoabilidade à proporcionalidade, ou seja, o razoável precisa ser proporcional.

Essa variável está ligada ao princípio da legalidade: não há crime sem prévia definição legal; não há pena sem prévia cominação legal. Cabe ao legislador fixar o conteúdo da norma penal incriminadora, promovendo a primeira individualização da pena, que é a legislativa. Ao Judiciário compete estabelecer a pena concreta, na decisão condenatória, firmando-se a individualização judiciária da pena. Após, também cabe ao Judiciário executar a pena, conforme o merecimento de cada sentenciado, assegurando-se a individualização executória da pena.

Não é demais ressaltar, então, que a pena privativa de liberdade tem um mínimo e um máximo, dividido em diferenciados regimes e formas alternativas de cumprimento. Qualquer excesso, causado pela prisão provisória, de duração irrazoável, provoca sequelas na legalidade. Ninguém pode ficar preso por mais tempo do que determina a lei; desse modo, ninguém deve ficar preso provisoriamente por maior período que o razoável e proporcional para apurar sua culpa.

A razoabilidade não pode ser vista somente sob o enfoque da sociedade, valendo dizer que, se o réu é considerado perigoso, autor de crime grave, estica-se o período de prisão provisória até ultrapassar todos os limites realmente racionáveis.

A razoabilidade, corretamente analisada, não significa impunidade; a injustificável ausência de punição decorre, inúmeras vezes, de falhas estruturais do Estado-investigação. Não pode – e não deve – o Judiciário chamar a si toda a responsabilidade pela punição dos criminosos, a todo e qualquer preço, pois isso representará descrédito ao Estado Democrático de Direito.

2.5 A indiferença pelo regime inicial de cumprimento da pena

A prisão provisória é capaz de confrontar com o conteúdo da sentença condenatória de primeiro grau, o que é inadmissível em virtude do princípio da legalidade.

Não são poucos os casos em que a prisão preventiva é decretada no início do processo, porém, atingindo a decisão condenatória, fixa o magistrado o regime semiaberto para início do cumprimento da pena. Paradoxalmente, nega o direito do réu de apelar em liberdade, por julgar ainda presentes dos requisitos da prisão cautelar.

Ora, se o acusado coloca em risco a ordem pública, pretende fugir ou ameaça testemunhas, como exemplos, nada mais justo que a sua inserção inicial se dê em regime fechado. Não é o que ocorre em várias situações. O julgador aplica a pena mínima, por inexistência de requisitos desfavoráveis do art. 59 do Código Penal, bem como de agravantes ou aumentos. Estabelece, então, coerentemente, o regime mais favorável, que, para uma pena de seis anos, ilustrando, seria o semiaberto. Entretanto, nega o direito de recorrer em liberdade.

Poder-se-ia até supor que essa decisão, em face da possibilidade de execução provisória da pena, seria imediatamente cumprida e o agente, transferido ao semiaberto. Mas não. Permanece no regime fechado, cautelarmente imposto, tendo direito, pelo menos, ao semiaberto. Dentre outros motivos, ao menos no Estado de São Paulo, por carência de vagas nas colônias penais.

A situação retratada é comum e espelha a contradição de posturas no processo de individualização da pena, em particular, quando confrontado com a prisão cautelar. Vê-se a fragilidade de concatenação de muitos juízes em lidar com o universo do Direito Penal, indissociável do Processo Penal. Não se pode decretar uma prisão cautelar sem colocar a visão à frente, buscando vislumbrar as consequências práticas que ela provocará. É imprescindível visualizar, no momento de estabelecimento do regime inicial da pena, a necessidade ou desnecessidade da prisão provisória

Teratológica passa a ser a decisão condenatória que, fixando o regime aberto, mantém a prisão cautelar, impedindo o réu de recorrer em liberdade. Inexiste qualquer sentido para isso, visto que, não recorrendo, estaria solto; apresentando apelo, continuará detido em regime fechado.

O único regime compatível com a mantença da prisão cautelar, quando prolatada a sentença condenatória, é o fechado. Ainda assim, é preciso cuidado para verificar o quantum da pena e associá-lo à detração. Afinal, imagine-se o seguinte: Fulano é condenado a seis anos de reclusão, em regime inicial fechado, pela prática de roubo. O juiz não lhe permite recorrer em liberdade. Porém, já se encontra preso, provisoriamente, há dois anos. Aplicada a detração, caso houvesse o imediato trânsito em julgado, o réu teria somente quatro a cumprir e, provavelmente, em regime semiaberto. Aliás, rigorosamente falando, já poderia ser inserido no aberto (um terço da pena já foi cumprida). Não nos parece cabível manter a prisão cautelar, pois o recurso levará outro período razoável para ser apreciado, motivo pelo qual o agente se aproximará de metade (ou mais) do cumprimento da sua pena, em regime fechado.

Pode-se, sempre, argumentar com a possibilidade de execução provisória da pena, instituto hoje admitido pelos tribunais pátrios. Entretanto, volta-se à indagação: se o acusado já pode progredir para regime semiaberto ou mesmo aberto, por que manter a prisão cautelar? O que se pretende assegurar com essa medida?

Voltamos a insistir: a prisão cautelar deve ser decretada com a visão concentrada na instrução criminal e, quando da sentença, no regime inicial fixado, no montante de pena a cumprir, ainda que se leve em conta outras condenações, bem como na utilidade de sua mantença durante a fase recursal.

2.6 A gravidade abstrata do crime

Muitos magistrados são inspirados pela gravidade abstrata – e relativa – do delito para determinar a prisão provisória e, ao final, por ocasião da sentença, fixar o regime fechado.

Há Súmula do Supremo Tribunal Federal a respeito: “A opinião do julgador sobre a gravidade em abstrato do crime não constitui motivação idônea para a imposição de regime mais severo do que o permitido segundo a pena aplicada” (Súm. 718).

Confira-se, também, a Súmula 440 do Superior Tribunal de Justiça: “Fixada a pena-base no mínimo legal, é vedado o estabelecimento de
regime prisional mais gravoso do que o cabível em razão da sanção
imposta, com base apenas na gravidade abstrata do delito”.

Enfim, se a gravidade abstrata do delito deve ser desconsiderada para a fixação do regime inicial de cumprimento da pena, para as Cortes Superiores, o que está correto, constitui insistência desprovida de fundamento jurídico a posição de certos julgadores, que permanecem a fixar o regime inicial fechado para delitos supostamente graves (como o roubo) e, mais, a decretar a prisão cautelar, sob os mesmos fundamentos.

Os crimes reputados grave, em abstrato, já foram devidamente coroados com as penalidades mais severas, de acordo com o princípio da proporcionalidade. Ao furto, dá-se uma faixa de reclusão de um a quatro anos, enquanto ao roubo tal faixa se eleva para reclusão de quatro a dez anos. Em nível legislativo, todos os delitos comportam a apreciação, em abstrato, da sua gravidade.

Cabe o juiz, no caso concreto, distinguir, individualizando corretamente a pena, quais crimes são realmente graves e quais não são. A mesma postura deve ser adotada para a decretação da prisão cautelar. Não fosse assim, todos os acusados por homicídio estariam presos, visto ser delito grave, em abstrato.

Inexistiria liberdade provisória para crimes considerados graves e grande parte do sistema penal seria estranho aos preceitos constitucionais.

Esse é o erro do legislador ao vedar a liberdade provisória, em tese, para certos crimes, considerados abstratamente graves. E isso ainda conta com um certo modismo, pois depende da infração penal reputada mais constante em mídia.

É o que se deu com a edição do Estatuto de Desarmamento, cujo art. 21 estabelece que “os crimes previstos nos arts. 16, 17 e 18 são insuscetíveis de liberdade provisória”. Somente para exemplificar, tornou-se delito grave a posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito (art. 16), crime de perigo abstrato, que teria tratamento mais rigoroso do que o próprio homicídio. Corrigiu-se o paradoxo, pois o STF considerou inconstitucional tal dispositivo (art. 21).

Não bastasse, o art. 44 da Lei de Drogas (Lei n. 11.343/2006) estabelece que o tráfico ilícito de entorpecentes é insuscetível de fiança e liberdade provisória. A partir disso, juízos e tribunais, em leitura singela da lei, passam a decidir que todo preso em flagrante, com base no tráfico, deve ficar cautelarmente detido até o final da instrução. Olvidam-se vários pontos: a) o STF não vem admitindo a vedação arbitrária e abstrata da liberdade provisória, como ocorreu com a Lei de Armas; b) proibir fiança e liberdade provisória é uma falta de senso técnico, pois a liberdade provisória é o gênero, do qual as espécies são com e sem fiança; c) os crimes hediondos passaram a admitir liberdade provisória, após a reforma introduzida pela Lei 11.464/2007, embora não acolham a fixação de fiança; d) não existe prisão preventiva obrigatória, logo, vedar a liberdade provisória para quem foi preso em flagrante significa consagrar a política do bode expiatório, vale dizer, quem for processado por tráfico ilícito de drogas, sem prisão em flagrante, pode permanecer em liberdade; quem der o azar de ser preso em flagrante, não pode aguardar em liberdade o seu julgamento.

Alguns argumentos, para manter a vedação instituída pela Lei de Drogas (art. 44), baseiam-se na proibição constitucional de fiança para o tráfico ilícito de entorpecentes (art. 5º, XLIII, CF). Ora, argumenta-se, se está vedada a fiança, que significa pagar um valor para ser posto em liberdade, com muito mais razão estaria proibida a liberdade sem o pagamento.

Com a devida vênia, o contrário disso é o que se impõe. Em primeiro plano, sabe-se, há muito tempo, que o legislador brasileiro desconhece, por completo, o que significa, hoje, o instituto da fiança. Acredita que tornar um delito inafiançável é conferir um tratamento rigoroso. Mal sabe que os valores estipulados para a fiança são pífios e não mais utilizados pelos juízos e tribunais. Somente se trabalha, na prática, com a liberdade provisória, sem fiança.

A Constituição Federal data de 1988 quando ainda se considerava o termo inafiançável uma preciosidade no rigorismo do Estado em relação a certos crimes. De lá para cá, várias decisões pretorianas consagraram o entendimento de que a fiança pode até ser vedada pela Constituição, para determinadas infrações, mas a liberdade provisória, sem a fiança, não é.

Ademais, o instituto da fiança pode ser considerado mais benéfico do que a liberdade sem fiança. No primeiro caso, sendo o crime afiançável, nem mesmo se discute, com rigor, o cabimento da liberdade provisória. Preenchidos os requisitos legais, estipula-se um determinado valor e o réu pode aguardar o julgamento solto. No segundo caso, não havendo necessidade de pagar qualquer valor, pode-se analisar mais detidamente o mérito da cautelar para se descobrir se há cabimento na liberdade provisória. Seria um tratamento mais apurado, calcado basicamente no art. 312 do CPP.

De toda forma, seja como for, é preciso considerar que os delitos hediondos vêm recebendo a alternativa da liberdade provisória, pois na lei específica (Lei 8.072/90) eliminou-se a proibição à liberdade sem fiança. Permaneceu a vedação à fiança por imposição constitucional.

Não é crível que o tráfico ilícito de drogas, delito equiparado a hediondo, não possa obter exatamente o mesmo benefício, somente porque a lei ordinária assim preceituou. Se o STF já declarou inconstitucional a Lei de Armas (art. 21), quando vedou a liberdade provisória indiscriminadamente; se o STF autoriza a concessão de pena alternativa para o condenado por tráfico, proclamando inconstitucional o disposto pelo art. 44 da Lei de Drogas (na parte referente à vedação às penas alternativas); se os delitos hediondos permitem liberdade provisória sem fiança, enfim, inexiste qualquer sentido para se proibir esse benefício ao acusado por tráfico ilícito de entorpecentes.

Cada caso deve ser analisado de per si. Não se pode generalizar, em Direito, situações abstratas. Somente a situação concreta é capaz de dirimir as dúvidas a respeito do merecimento (ou não) da liberdade provisória.

Lembremos, ademais, que consagrar a vedação abstrata de liberdade provisória a determinados casos tem o mesmo sentido que pregar, ao contrário, a prisão preventiva obrigatória. Se os presos em flagrante por tráfico jamais podem receber o benefício de aguardar soltos os seus julgamentos, por uma questão de lógica, todos os réus processados com base no mesmo delito devem ser presos provisoriamente.

A assertiva é plenamente válida, sob os seguintes prismas:

– Prisão em flagrante = direito à liberdade provisória condicionado à não configuração dos requisitos da prisão preventiva (art. 312, CPP)

– Decretação da prisão preventiva = medida não obrigatória, sujeita à prévia verificação dos requisitos do art. 312 do CPP, em qualquer crime, incluindo o tráfico.

– Prisão em flagrante de traficante = somente pode ser mantida se presentes os requisitos do art. 312 do CPP.

Em síntese, se não se pode considerar a gravidade abstrata do delito para fixar o regime inicial de cumprimento da pena, por óbvio, também não se pode considerá-la para a decretação da prisão cautelar. O abstrato não pode produzir efeitos jurídicos negativos ao réu, que é, constitucionalmente, presumido inocente, até o trânsito em julgado de decisão condenatória, vedado o cumprimento antecipado de pena.

3. Conclusão

O Estado Democrático de Direito, calcado, dentre outros, no respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, possui direitos e garantias individuais, firmados pelo art. 5º, da Constituição Federal, merecedores de fiel respeito.

O enaltecimento do princípio da presunção de inocência não significa, em hipótese alguma, uma afronta à segurança pública, nem aos demais direitos individuais. Quer-se, apenas, assegurar o estado de inocência, natural de cada ser humano ao nascer, até que o Estado, por meio do devido processo legal, demonstre o contrário, sem sombra de dúvida, o que é trazido pelo trânsito em julgado da decisão condenatória.

O estado de inocência não tem o condão de eliminar a prisão cautelar, nem permitir que todos os criminosos aguardem os seus julgamentos em liberdade. Não tem o objetivo de extirpar o rigor da Justiça Criminal em relação aos delinquentes perigosos, reincidentes e associados em organizações criminosas.

Busca-se evidenciar que é fundamental exterminar o estigma de que, sendo réu, o sujeito perde seus direitos e garantias essenciais, podendo ser tratado com qualquer nível de rigorismo pelo Estado. Há que se ter em mente a dignidade humana, acima de tudo. Ninguém pode proclamar-se livre da prática de um crime, mormente em países como o nosso, com um enorme entulho legislativo penal vigente. Por isso, o respeito à dignidade do réu é atitude sensata e autoprotetiva.

A vulgarização da prisão cautelar, quando desnecessária, configura nítida antecipação de pena, desprezando-se o estado de inocência. Por outro lado, antecipando-se a pena, no mínimo, seria indispensável ocorrer condenação, pois, do contrário, banaliza-se o direito à liberdade individual, a ponto de se prender sem necessidade e, depois, colocar-se na rua sem a menor cerimônia.

Os erros judiciários em relação à prisão provisória são inúmeros, mas há evidente falta de consciência da cidadania, pois ações reparatórias ainda são raras na Justiça cível. Por outro lado, inexiste, na prática, qualquer fiscalização rígida no tocante aos magistrados que mantêm flagrantes sem fundamentar e sem necessidade ou decretam prisões cautelares sem lastro probatório suficiente.

Não se trata de generalizar críticas ao Judiciário, ao contrário, cuida-se de retratar um dos aspectos negativos da magistratura na esfera criminal, querendo crer-se ser a minoria, que não destina zelo e atenção aos casos de prisão cautelar sob sua jurisdição.

A experiência em segundo grau nos faz ratificar as considerações doutrinárias já tecidas em obras anteriores, no sentido de que há uma demasiada quantidade de casos de prisões cautelares inutilmente decretadas, bem como existem vários flagrantes mantidos sem qualquer motivação, dando ensejo a violações contumazes aos princípios constitucionais vigentes.

A lentidão do Poder Judiciário, na área criminal, é desastrosa, tanto porque envolve impunidade (com o advento, por exemplo, da prescrição) como pelo fato de haver descontrole da razoabilidade e da proporcionalidade da prisão provisória. Emergem, então, não somente casos de antecipação de pena como as teratológicas situações de réus presos cautelarmente com sentenças absolutórias, sem que se dê qualquer valor à restrição adiantada à liberdade.

Enquanto não se resolve, na prática, o latente problema da carência de recursos do aparelho judiciário, cabe a cada juiz o dever de controlar, em seus feitos, a indispensabilidade da prisão cautelar, seu prazo razoável de duração e o respeito à proporcionalidade em face da possível pena a ser ministrada.

A presunção de culpa, que acarreta a antecipação de pena, precisa ser eliminada do cenário processual penal brasileiro, pois constituem paradigmas da ilegalidade, logo, antíteses do Estado Democrático de Direito.