Avançar para o conteúdo

A realidade da soberania dos veredictos no Tribunal do Júri

O Tribunal do Júri é um órgão colegiado do Poder Judiciário, composto por um juiz togado, que o preside, e vinte e um jurados, dos quais sete são sorteados, aleatoriamente, para compor o Conselho de Sentença (a turma julgadora do mérito da causa). A função do magistrado de carreira é presidir a sessão, resolvendo as questões de direito que lhe forem apresentadas e conduzindo os trabalhos até atingir o ápice do julgamento, ocorrente em sala especial, quando os jurados proferem seu veredicto. São sete jurados, logo, as decisões são tomadas por maioria de votos. Os juízes leigos respondem a um questionário, proposto pelo juiz presidente, com a anuência das partes.

Há princípios constitucionais regentes da instituição do júri, a saber: a) plenitude de defesa; b) sigilo das votações; c) soberania dos veredictos; d) competência para o julgamento de crimes dolosos contra a vida (art. 5º, XXXVIII, CF).

O Código de Processo Penal regula o funcionamento geral do Tribunal do Júri, porém, sem jamais se olvidar dos seus princípios constitucionais indeclináveis.

Pretendemos dar enfoque, neste texto, à soberania dos veredictos. Por que foi inserido o princípio na Constituição Federal? Qual o seu alcance? É devidamente respeitado pelo Judiciário togado?

Em primeiro lugar, segundo observam vários autores nacionais e estrangeiros, cuidando do Tribunal do Júri, a soberania dos veredictos é instrumento de eficiência e respeito à instituição do colegiado popular, chamado a julgar causas criminais de relevância. Júri, sem soberania, não é Júri, como sempre se disse. Aliás, nada mais verdadeiro. Fossem os jurados chamados ao fórum para proferir um julgamento, que poderia ser reformado, quanto ao mérito, pelo Tribunal togado, teríamos, na verdade, um Conselho Popular, emitindo pareceres sobre casos práticos, na maior parte das vezes, sem a menor valia para a magistratura de carreira. Afinal, esta não sobrevive de votos, pouco importando, pois, o que o povo pensa em relação a determinado crime. Por isso, a sua inserção na Constituição Federal, como cláusula pétrea, permite a sobrevivência útil do Tribunal do Júri.

Quanto ao alcance, volta-se a soberania dos veredictos a ordenar um comando duplo: ao legislador e ao juiz. Soberano é aquele que detém o poder supremo, máximo, não havendo condições de receber ordem de quem quer que seja. Portanto, veredicto soberano é o intangível. Em suma, a decisão proferida pelo Conselho de Sentença deve ser a derradeira. Leis não podem alterar tal propositura. Decisões de juízes togados, idem.

Mas todos podem errar, dirão alguns. Juízes equivocam-se em suas decisões, no dia-a-dia. Como fazer para reparar esses desvios? Para isso, existem os recursos. No processo penal, garante-se o duplo grau de jurisdição como um princípio de status constitucional, absorvido do Pacto de San José da Costa Rica. Logo, contra a decisão tomada pelos jurados, torna-se possível o ingresso de apelação (art. 593, III, d, CPP). As demais hipóteses de apelação, no contexto do júri, voltam-se ao conteúdo da sentença relativo ao juiz togado (art. 593, III, a, b e c, CPP).

Entretanto, se o Tribunal togado der provimento ao apelo, nada mais faz que remeter o feito a novo julgamento, que será realizado por outro Conselho de Sentença diverso. Portanto, é o povo revendo a decisão do povo. Reafirma-se a soberania do veredicto popular e dá-se a devida importância ao duplo grau de jurisdição.

Outras situações podem desencadear novo júri: a) protesto por novo júri; b) habeas corpus. O primeiro destina-se a casos em que, por um delito, o réu tenha sido condenado a vinte anos ou mais de reclusão. Terá nova oportunidade. O segundo volta-se a situações de anulação, por vício insanável. Entretanto, novamente será o Júri a julgar o caso. Nenhuma violação à soberania dos veredictos.

Superado o seu alcance, cujo fito é garantir a sua eficiência como instituição, resta-nos a análise do respeito à sua aplicação. Pensamos que a realidade diverge da teoria. Muitos Tribunais, compostos por magistrados togados, insistem em reavaliar o caso julgado pelo Júri, à luz de sua própria doutrina e, quando não, de sua jurisprudência. Ora, não é esta a sua função. Somente se pode dar provimento à apelação, no contexto do júri, se os jurados decidirem manifestamente (notoriamente, flagrantemente, patentemente) contrário à prova dos autos. No mais, se o veredicto está de acordo ou em desacordo à jurisprudência reinante naquele Câmara ou Turma ou em relação a outros Tribunais, pouco importa. Jurados são juízes leigos, que não têm a menor obrigação de conhecer a jurisprudência dominante. Aliás, nem os operadores do Direito a conhecem com absoluta segurança.

Se positiva ou negativa a soberania, cuida-se de um problema político-institucional. Assim foi a decisão do constituinte de 1988. Somente se pode alterar tal postura em nova Assembléia Nacional Constituinte.

Outro dado relevante, já por nós defendido em obras que cuidam do tema (Código de Processo Penal comentado, Manual de processo penal e execução penal e júri – princípios constitucionais), diz respeito à revisão criminal. Estamos convictos que a decisão do Tribunal togado, ingressando no mérito da condenação proferida pelos jurados, com trânsito em julgado, para absolver, afastar qualificadoras ou outras causas de aumento, modificando, pois, o conteúdo original do veredicto é, sem dúvida, ofensiva à soberania proclamada pela Constituição. Se alguma prova nova surgisse, o caminho seria ingressar com revisão criminal e o Tribunal determinar que outro júri se realizasse para apreciar, novamente, o caso. A prática, no entanto, demonstra o contrário. Sem qualquer prova nova, bastando um simples pedido do interessado, vários são os casos em que se revê o decidido pelo Tribunal Popular, alterando, quanto ao mérito, o veredicto. Que soberania é essa? Que poder supremo é esse? Argumenta-se que mais vale atropelar um princípio regente da instituição do júri do que manter um inocente no cárcere… Ora, mas quem vai dizer, afinal, em última análise, que o réu é inocente? O correto seria dar provimento à revisão criminal, se houver indício de erro grave, para encaminhar o caso a outro julgamento pelo Tribunal Popular. Se inocente ou culpado, a decisão é do povo. Isto é soberania. O restante é argumentação jurídica para enfraquecer a instituição. Aliás, ad argumentandum, tantos são os casos de revisão criminal alterando o veredicto popular que poderíamos afirmar o seguinte: se houvesse possibilidade de o Ministério Público ingressar com revisão criminal contra decisões absolutórias, proferidas pelo Tribunal do Júri, teríamos, na prática, transformado esta instituição em órgão meramente consultivo. Respeitar a decisão popular é cumprir a Constituição Federal. A realidade da soberania dos veredictos ainda está distante de ser atingida.