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Violência doméstica: um assunto sério tratado com irresponsabilidade no Brasil

Desde a publicação da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), a qual comentamos, artigo por artigo, em nossa obra Leis penais e processuais penais comentadas, temos apontado para o paradoxo da rigidez em matéria processual penal, permitindo a prisão preventiva, mesmo quando inexistem, claramente, os requisitos do art. 312 do CPP, e a frouxidão em âmbito penal. Não somente o fizemos no campo da doutrina, mas em nossos votos no Tribunal de Justiça de São Paulo, onde atuamos como Desembargador. Antes de ser promovido ao 2º grau, atuamos muitos anos em Vara do Júri da Capital do Estado de São Paulo. Ali, tomamos conhecimento direto com a violência doméstica, que a nós chegava pelo infeliz caminho da tentativa de homicídio e também do homicídio consumado. Entretanto, estava muito claro que os crimes precedentes, menos graves, eram os delitos de ameaça e lesão corporal (leve, grave ou gravíssima). A maior parte dos casos teria sido resolvida se houvesse uma atuação eficiente do Estado, ainda no cenário da lesão ou da ameaça. Porém, essas infrações penais eram de menor potencial ofensivo, dando margem a transações absurdas, como obrigar o agressor a entregar cestas básicas a instituições de caridade. Um acinte à justiça. Em primeiro lugar, nunca existiu essa pena: entregar cestas básicas a quem quer que seja. Em segundo, tratou-se de uma invenção de juízes, que viram no art. 45, § 2º, do Código Penal a porta aberta a tal entendimento: “no caso do parágrafo anterior, se houver aceitação do beneficiário, a prestação pecuniária pode consistir em prestação de outra natureza”. O parágrafo anterior prevê a prestação pecuniária, consistente no pagamento de 1 a 360 salários mínimos a entidade pública ou privada de fundo social, servindo para abater reparação civil para o dano provocado pelo crime. Não sendo possível ao condenado arcar com a prestação em pecúnia (dinheiro), ele poderia conseguir satisfazer a obrigação, se a vítima aceitasse, com outra natureza de obrigação, diversa da pecúnia, tal como a prestação de serviços. Logo, quem criou a entrega de cestas básicas (que se compra com dinheiro) a entidades sociais infringiu a lei penal. Eis os arautos da modernidade penal, verdadeiros ofensores do tradicional e constitucional princípio da legalidade. A situação foi de tamanha desfaçatez que o legislador, ao editar a Lei 11.340/2006, foi levado a proibir o que nunca existiu legalmente (no art. 17 da referida Lei, veda-se essa “pena”, in verbis: “é vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa”). É indecoroso supor que juízes brasileiros estão legislando, inventando o que não há na lei penal ou processual penal, para obrigar o legislador, então, a vedar o inexistente. Estaríamos vivenciando uma época de ativismo judicial? Os que o praticam, por certo, negam. Os que não o praticam, por omissão, silenciam. Mas a realidade aponta, afirmativamente, para o ativismo judicial em inúmeras áreas criminais.

Sob outro ângulo, quando o agressor de mulheres vem a ser preso cautelarmente (prisão preventiva), quanto tempo ele pode ficar detido? Ora, a prisão provisória, no Brasil, salvo casos específicos, não possui prazo determinado em lei. Impera (ou deveria imperar) o bom senso judicial, mesclado aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Não se pode prender preventivamente um indivíduo, acusado somente pela prática do crime de ameaça, cuja pena é de detenção, de um a seis meses, ou multa, por vários e vários meses. Mas é o que tem acontecido em diversos casos. A lesão corporal leve também não contribui com a prisão provisória extensa. O que faz o legislador? Recolhe-se de propósito, deixando a carga explosiva em colo de juízes? Legisla em lacunas que, embora importantes, não resolvem os problemas? Tentaremos responder às questões lançadas. Em primeiro lugar, cumpre-nos apontar a edição da Lei 13.641/2018, que criou o art. 24-A, na Lei Maria da Penha: “descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos. § 1o A configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu as medidas. § 2o Na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança. § 3o O disposto neste artigo não exclui a aplicação de outras sanções cabíveis”. Esta lei tem por finalidade resolver o impasse gerado pelo descumprimento, simples e direto, pelo agressor daquelas medidas básicas de afastamento do lar conjugal, não aproximação do agressor a tantos metros da vítima etc. Para nosso entendimento, o crime de desobediência era suficiente (art. 330, CP). Mas, surgiu a corrente jurisprudencial negando essa aplicação, pois dizia que já existia pena (isto mesmo, pena, sinônimo de punição) na lei, o que não comportaria o advento do crime de desobediência. Qual seria essa penalidade? A prisão preventiva. Infelizmente, terminamos descobrindo algo inédito: prisão cautelar é, também, punição. Sempre decretei a preventiva para assegurar o bom êxito do processo-crime e o futuro cumprimento da pena. Fui surpreendido pela definição de prisão cautelar como pena (não desconheço o instituto da detração, mas este é um benefício ao réu, não servindo para caracterizar a prisão provisória como antecipação da pena). Se realmente for assim (prisão preventiva é pena), não se há que ponderar pela aplicação do crime de desobediência. Resta a pergunta: por que, então, aplicar o novo art. 24-A? Se já existe punição (prisão preventiva), não pode haver bis in idem… O referido art. 24-A seria um natimorto.

Voltando ao básico, ninguém, no Brasil, conseguiu resolver o problema penal da Lei Maria da Penha: as penas dos crimes mais praticados contra as mulheres são pífias (ameaça e lesão leve). Entretanto, o problema social é imenso. Um recado ao legislador: nunca haverá eficaz aplicação de qualquer medida efetiva de contenção da violência doméstica, enquanto a ameaça tiver uma pena ínfima de um a seis meses de detenção ou multa, nem quando a lesão leve tiver pena de detenção de três meses a um ano. Pior, quando lesão for qualificada pela violência doméstica, tiver pena mínima de três meses de detenção (embora a máxima atinja três anos), estaremos no campo da ilogicidade. É preciso tipificar a ameaça cometida em ambiente doméstico (como ameaça qualificada) e a lesão doméstica, qualificada pela violência doméstica, contendo penas (especialmente as mínimas) realmente elevadas para dar guarida a prisões preventivas de igual paralelo. Enquanto a reforma penal relativa à violência doméstica não for realizada, continuaremos a ouvir certos diálogos aparentemente fictícios: um desembargador diz a outro: “vou manter a prisão cautelar deste réu, agressor de mulheres, pois, se sair do cárcere, pode matar a ex-esposa”; o outro responde: “mas ele está detido há oito meses e foi acusado somente por ameaça, cuja pena máxima é de seis meses”; o primeiro diz: “sei disso, mas não serei eu a soltar o sujeito… Vai que mata a mulher”; o segundo: “o que fazer então?”; o primeiro: “a gente segura aqui; deixa o problema para o STJ; se quiser que solte o réu; se matar a imprensa cai de pau no STJ”.

Seria esse um diálogo imaginário, produzido em Tribunal fictício, mas que, eventualmente, poderia adaptar-se a algum foco de realidade. Se esta situação ocorrer, na concretude da vida, estamos perdidos, pois não temos nem legisladores nem magistrados corajosos e aptos a deter o avanço da violência contra a mulher, ao menos na seara penal.

 

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